Artigo do domingo – Verdade e pós-verdade

Na prosa, talvez os dois grandes nomes do modernismo dos EUA tenham sido Ernest Hemingway (1899/1961) e F. Scott Fitzgerald (1896/1940). Amigos, a intimidade da relação entre ambos, junto a outros grandes nomes do modernismo nas artes do mundo, reunidos na capital francesa durante os “loucos” anos 1920, é descrita em detalhes em “Paris é uma festa”, romance inacabado do primeiro, publicado após sua morte.
A grande obra de Hemingway é, no entanto, “O velho e o mar”, na qual ele narra a saga solitária e épica do velho pescador Santiago contra um gigantesco marlim, nos mares da Cuba pré-Revolução de 1959. Publicado em 1952, o livro lhe valeu o Prêmio Nobel de Literatura dois anos depois.
Por sua vez, o romance de Fitzgerald mais aclamado pela crítica é “O grande Gastby”, publicado em 1925, cujos originais Hemingway foi um dos primeiros a ler. A história do jovem veterano da I Guerra Mundial (1914/18) Jay Gatsby, que monta um mundo de fantasia e ostentação para tentar reconquistar um amor do passado, idealizado, mesmo depois de consumado, teve cinco adaptações ao cinema: em 1926, 1949, 1974, 2000 e 2013.
Do modernismo àquilo que, na falta de nome melhor, se convencionou chamar de pós-modernidade, vivemos agora os tempos da pós-verdade (“post-truth”). Eleita a palavra do ano em 2016, pelo conceituado dicionário de Oxford, guardião da língua em que escreveram Hemingway e Fitzgerald, o novo verbete foi assim definido: “relativo a ou que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influenciadores na formação da opinião pública do que apelos à emoção ou à crença pessoal”.
No ano recém-encerrado, o termo ganhou popularidade nas campanhas do plebiscito vencido pelo Brexit, que definiu a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, e da eleição presidencial dos EUA vencida pelo fanfarrão republicano Donald Trump. Ambas foram marcadas pela disseminação de notícias falsas, viralizadas na democracia irrefreável das redes sociais, que definiram as duas campanhas.
No tempo da pós-verdade, o que vale não é o fato, mas a versão do fato. É a popular “fofoca de vila”, que existe desde o desenvolvimento da linguagem e da vida sedentária pela espécie humana, ainda na Pré-História, mas só ganharia progressão geométrica em tempo real com o avanço das redes sociais nos últimos anos.
Seu questionamento também não é novo. Já estava presente na Grécia Antiga, berço da Civilização Ocidental e da democracia, na qual a arte retórica passou a definir os destinos da coletividade, sendo desvirtuada pelos sofistas, que se orgulhavam por sustentar convincentemente uma opinião para, em seguida, fazer o mesmo com o ponto de vista oposto. E ensinavam isso por dinheiro, de cidade em cidade, numa prática criticada com veemência pelo filósofo Sócrates (469/399 a.C.), condenado a beber cicuta, vítima fatal das mesmas maledicências e ressentimentos vulgares que combateu.
Difícil projetar como Sócrates veria hoje, por exemplo, os defensores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC) se digladiando com suas pós-verdades nas redes sociais, geralmente com base na ignorância da diferença entre manifestação de pensamento e argumento dialético, entre opinião e fato.
Diante da fartura de evidências, evisceradas pela operação Lava Jato, de que Lula comandou um esquema criminoso nos 13 anos em que o PT governou (e quebrou) o Brasil, prevalece aos seus adoradores a figura do líder proletário que promoveu a ascensão social das classes menos favorecidas — empurradas de volta aonde vieram pela recessão econômica. Já aos fiéis de Bolsonaro, o combate à corrupção se transformou de matéria do Código Penal em monocórdia plataforma política, em detrimento de avanços na paridade de direitos de gênero, orientação sexual, credo religioso, ideologia política, cor de pele e origem social.
Para os primeiros, Lula e o PT não roubaram aos bilhões. Para os segundos, a Ditadura Militar no Brasil (1964/85) não torturou e matou aos milhares. Ou, pior, se cometeram seus crimes, deveriam receber indulgência em nome de um suposto “bem maior”. E dos dois lados se finge esquecer que o produto final de petistas e militares foi um país desperto na mais lancinante ressaca econômica, após a embriaguez delirante da megalomania.
No tempo da pós-verdade, Lula quase pôde ser nomeado ministro pela então presidente Dilma Rousseff (PT) para fugir do julgamento de Sérgio Moro. Assim como Moreira Franco (PMDB), nomeado com mesmo fim pelo atual presidente Michel Temer (PMDB). E o resto do Brasil que se proteja dos cacos afiados projetados aleatoriamente no espaço pelas pedras atiradas, de lado a lado, sobre telhados de vidro separados por um muro moralmente invisível.
Com igual acinte, se elege Edison Lobão, alvo de dois inquéritos na Lava Jato, parceiro de Temer no PMDB e ex-ministro de Lula e Dilma, como presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, composta por mais 13 investigados da mesma operação da Justiça Federal. É o mesmo jogo de cartas marcadas no qual Trump cortou o baralho antes mesmo de ser eleito, pelo colégio eleitoral, não pelos votos dos eleitores: “Se eu perder, é fraude”.
Na tentativa de reconquistar sua paixão, Gatsby construiu sua pós-verdade numa origem aristocrática, quando não passava de um gângster, contrabandista de bebidas durante a Lei Seca nos EUA. Desmascarado, perdeu o amor que idealizou antes de perder a própria vida, sangrando até a morte na piscina da sua mansão, vítima passional de outra pós-verdade.
Num combate sobre-humano, mas real, que quase lhe matou, Santiago conseguiu capturar o peixe. Se no caminho de volta para Cuba, sobre o dorso das ondas, os tubarões devorariam pelas entranhas seu maior feito, a gigantesca carcaça descarnada, amarrada ao pequeno barco já ancorado no cais, revelou aos demais pescadores e aldeões, estupefatos, que a vida, a luta e a glória do velho homem eram a verdade. Exausto, ele dormiu bem com isso.

Publicado hoje (12) na Folha da Manhã

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Este post tem um comentário

  1. Sérgio Provisano

    Aluysio Abreu Barbosa, os que vão morrer, te saúdam! Estavas devendo algo de tua safra e, meu domingo foi brindado com esse texto que aborda dois intelectuais que amo e também com uma análise lúcida do conturbado momento que vivemos nessa imensa, porém limitada aldeia global, tão paupérrima de ideias e produção intelectual. Tempos de Grande Irmão em que todos somos permanentemente vigiados, tempos sombrios, cabulosos, tenebrosos, tempos de meias verdades, de não-verdades e, raramente algumas verdades. Textos e principalmente, intertextos… Aqueles que não estão escritos, mas estão lá, basta termos discernimento para lê-los, é só querer, deixar de lado a preguiça atávica. Ler o intertexto não é o mesmo que ler as entrelinhas, mas essa discussão deixamos para depois o que quero dizer mesmo, é que adorei a leitura, vou salvá-la para reler e reler, pois cada vez que lê-la, lerei com outro olhar, o do estranhamento, lerei as verdades que estão por trás, as “interverdades”… Fraterno e forte abraço.

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