Crítica de cinema — Brecht estava errado

 

“Até o último homem” — “Infeliz a nação que precisa de heróis”. A conhecida sentença do alemão Bertolt Brecht (1898/1956), entre os mais influentes dramaturgos do séc. XX, é posta à prova pela história real do soldado estadunidense Desmond T. Doss (1919/2006), que serviu como paramédico na Batalha de Okinawa, entre abril e junho de 1945, já no estertores da II Guerra Mundial — a Alemanha Nazista se renderia em maio de 45, enquanto o Japão o faria em agosto do mesmo ano, após as bombas atômicas lançadas pelos EUA sobre Hiroshima e Nagasaki.

Se o heroísmo em qualquer conflito bélico costuma ser atribuído aos maiores guerreiros, o que surpreende na história de Desmond Doss é que ele evidenciou o seu como pacifista, mesmo no campo de batalha mais sangrento da Guerra do Pacífico, iniciada em 1937 — dois anos antes da eclosão da II Guerra na Europa. E novamente em contraponto a Brecht, que era marxista e ateu, a religião foi o motivo pelo qual Doss se recusou a pegar em armas para se tornar protagonista num teatro de guerra dantesco.

Adventista do Sétimo Dia, ele tinha como mandamento mais caro o “Não matarás” (Êxodo 20:13). E antes de enfrentar os japoneses, famosos por seu destemor diante da morte e — por não signatários da Convenção de Genebra — pela crueldade para com os inimigos, o soldado teve o batismo de fogo das suas convicções pessoais contra o próprio Exército dos EUA, no qual se alistou como voluntário.

Levado às telas sob a direção de Mel Gibson, “Até o último homem” divide em três partes a história de Doss, numa interpretação candidata ao Oscar de Andrew Garfield, ator mais conhecido pelas duas sequências de “O espetacular Homem-Aranha” (2012 e 2014, de Marc Weeb). Após a abertura do filme no inferno de Okinawa, a primeira parte das suas 2h19 de duração se atém à formação do futuro herói de guerra numa cidadezinha no interior da Virgínia — primeira região dos EUA a ser colonizada pelos britânicos, no início do séc. XVII, e batizada em homenagem à rainha Elizabeth I (1533/1603), chamada de “Rainha Virgem” por nunca ter se casado.

Desmond é marcado pelo alcoolismo do pai, Tom Doss, em original composição de Hugo Weaving, mais conhecido como o Sr. Smith da trilogia “Matrix” (1999 e 2003), das transgênero irmãs Washowski. Veterano da I Guerra Mundial (1914/18), ele se culpa por ter sobrevivido aos ex-companheiros de juventude que costuma visitar embriagado no cemitério da cidade. Para se exorcizar dos fantasmas do pai, o filho busca abrigo na devoção religiosa da mãe (Rachel Griffiths), abusada física e psicologicamente pelo marido.

Introvertido, Desmond descobre o amor pela mulher e ao próximo ao socorrer um acidentado, que leva ao hospital onde conhece a enfermeira Dorothy Schutter (a bela Tereza Palmer). Mas no meio da relação e do aprendizado autodidata de medicina, a partir dos livros emprestados pela namorada, os japoneses atacam Pearl Habor, base naval dos EUA no Havaí, em dezembro de 1941, lançando o país na II Guerra.

Para cumprir o que entende ser seu dever, Doss é voluntário ao treinamento militar, com a mesma convicção de quem pretende cumpri-lo sem tocar em nenhuma arma. No conflito inevitável (e violento) entre os dogmas religiosos e militares, se dá a segunda parte do filme, que alguns críticos têm comparado com a obra prima “Nascido para matar” (1987), do mestre Stanley Kubrick (1928/99) — muito embora também encontre analogia com outros excelentes títulos menos conhecidos, como “Metido em encrencas” (1988), de Mike Nichols (1931/2014), e “Tigerland” (2000), de Joel Schumacher.

Mas é na terceira parte do filme, em meio à Batalha de Okinawa, na tentativa de tomada da colina de Hacksaw (a “Hacksaw Ridge” do título original), que não só o protagonista, como seu diretor, mostram a que vieram. Correspondentes à realidade, as cenas de violência explícita não ficam a dever à célebre sequência inicial de “O resgate do soldado Ryan” (1998), de Steven Spielberg, retratando o encarniçado desembarque do Dia D na praia francesa de Omaha. Tampouco às cenas mais fortes de “Além da linha vermelha” (também de 98), de Terrence Malick, sobre a Batalha de Guadalcanal, outra intestina peleja da Guerra do Pacífico, naquele que considero o maior filme de guerra — e sobre a relação do homem com Deus — já feito.

Astro dos filmes de ação entre os anos 70 e 90 do século passado, como nas franquias “Mad Max” (1979, 81 e 85, de George Miller) e “Máquina mortífera” (87, 89, 93 e 98, de Richard Donner), Mel Gibson teve uma estreia despretensiosa na direção, com “O homem sem rosto” (93), antes de revelar o “nu frontal” da violência física no cinema, em cenas de batalha medieval, como ninguém antes ousara fazer. Foi em “Coração valente” (95), também estrelado por ele, com o qual arrebatou os Oscar de melhor filme e diretor.

A partir do polêmico “Paixão de Cristo” (2004), seu trabalho seguinte atrás das câmeras, Gibson uniu a mesma violência gráfica à devoção de católico fervoroso. E sofreu acusações de antissemitismo, pelo destaque do filme à escolha dos judeus por Barrabás ao perdão romano, sentimento que o diretor depois externaria em ofensas verbais contra policiais, em 2006, ao ser preso por dirigir embriagado. Pecado mortal no mundo do politicamente correto, sobretudo numa aldeia judaica como Hollywood.

Depois de outro mergulho na violência ao retratar o ocaso da sofisticada — e sanguinolenta — Civilização Maia, na direção do interessante “Apocalypto” (2006), a boa acolhida de público e crítica de “Até o último homem”, além das suas seis indicações ao Oscar, incluindo melhor filme e diretor, têm sido consideradas uma espécie de redenção de Mel Gibson no mundo do cinema. Se tem seus momentos piegas, ninguém pode negar que o filme é feito com grande competência técnica, em sua busca por um caráter documental reforçado nos depoimentos dos personagens reais, incluindo o próprio Doss, antes dos créditos finais.

Independente da questão religiosa, a história real do primeiro objetor de consciência — quem se nega a matar por princípio moral — que recebeu a Medalha de Honra do Congresso dos EUA, maior condecoração militar daquele país belicoso, por ter socorrido e descido por uma montanha 75 feridos, incluindo japoneses, dolosamente sozinho e desarmado atrás das linhas inimigas, é realmente impressionante. E no equilíbrio aparentemente contraditório do personagem, o diretor parece também ter encontrado o seu entre violência e fé.

Se fosse ficção, ninguém acreditaria. Mas não foi. Da arte à vida que, vez em quando, a supera, Brecht estava errado. Há heróis que transcendem o palco das nações.

 

 

Confira o trailer do filme:

 

https://youtu.be/R4cmOy0V8UA

 

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