Vanessa Henriques — G., paraibana, 38 anos, travesti: uma biografia

 

 

 

História pessoal

Do nascimento até mais ou menos os 26 anos (a entrevistada não soube precisar) morou em João Pessoa, na Paraíba. Aos 16 anos foi expulsa de casa pelo pai, que não aceitava ter um filho homossexual. Sofria rejeição dos parentes por já na adolescência apresentar características femininas. Relata que apenas a mãe a defendia das costumeiras agressões verbais e físicas que recebia das pessoas do seu convívio. Afirma ter sido estuprada mais de uma vez no período da adolescência, inclusive pelo próprio pai. Além disso, relata outros tipos de violência sexual sofridos na escola, perpetrados pelos colegas que a molestavam por ser considerada uma “bichinha”. Estudou até a quarta série e atribui a interrupção dos estudos à contração do vírus da Aids.

Aos 26 anos, conhece uma travesti, vinda de São Paulo, que a convence a deixar a cidade natal e arriscar a vida na metrópole, onde poderia construir um corpo mais feminino e atraente. Seduzida pela promessa, chega a São Paulo, mas imediatamente é abandonada à própria sorte e encontra guarida na casa de um “cafetão”. Precisava pagar “pedágio” ao cafetão dividindo os afazeres domésticos com outras travestis que lá viviam. Avisaram-lhe que se prostituir também era uma condição para permanecer morando lá. Devido ao fato de ainda ter o corpo muito masculino, tinha que usar diversas calças e sutiãs com enchimentos para simular um corpo feminino mais torneado. Era humilhada pelos homens que passavam pela rua, porque os artifícios que usava não conseguiam disfarçar suas formas franzinas e masculinas. Começou a passar por procedimentos de modificação corporal, com aplicações de silicone nas maçãs do rosto, nas nádegas, seios e coxas, para que ganhasse contornos mais robustos. Ao olhar-se no espelho depois das transformações, afirma nunca ter se sentindo tão bem consigo mesma. Conta que a partir daí, começou a ser o “sucesso da pista”, desbancando outras travestis que já disputavam os clientes do mercado da baixa prostituição.

Conheceu um homem que estava desempregado, recém-saído da prisão, que procurava um teto para se abrigar. Afeiçoou-se dele e resolveu deixar que ele ficasse morando em seu quarto alugado, mas deixando claro que seriam apenas amigos. Certa noite, ela encontrou seu amigo fumando um cachimbo de crack; pediu por uma “tragada” e gostou bastante. Antes de usar crack, fazia uso apenas de álcool regularmente. Começou a assaltar os homens que a abordavam na rua em busca de um programa. Assim que entrava no carro, sacava uma arma e tomava todo o dinheiro e os pertences dos quais podia se apossar. Grande parte do dinheiro era usada para comprar crack, que dividia com o amigo que, pouco tempo depois, se tornou seu marido. Começou a traficar e a cometer roubos maiores.

Afirma que o crack passou a ser aquilo que a sustentava. A droga também lhe proporcionava mais coragem; sabia que quando fumava, seria mais bem sucedida nos assaltos. Eis a sua rotina durante aquelas noites e madrugadas: chegava à rua, assaltava, ia para a “Cracolândia” arrumar umas pedras, fumava tudo, e voltava à “pista” para roubar algum cliente desavisado, reiniciando o ciclo. Durante todo esse tempo, o relacionamento com o marido era marcado por brigas violentas, que envolviam agressões físicas de todos os tipos. Certa vez, num arroubo de ciúme, colocou fogo no corpo do parceiro, o que causou nele queimaduras de segundo e terceiro grau por todo o corpo, episódio que encerrou a relação. “Enlouquecida” pelo arrependimento e pela solidão que se seguiram a este episódio, entrou numa quadrilha de assaltantes formada apenas por travestis, chamada “Gangue das Bonecas”. Este foi o auge de sua carreira criminosa, que culminou num período de oito meses passado no cárcere. Assim que cumpriu sua pena, retornou a João Pessoa para viver com sua mãe – única pessoa da família com quem mantém contato – mas não suportou a estadia em sua cidade natal, porque não conseguia parar de pensar no ex-marido, e era a expectativa de um dia estar ao seu lado de novo que conferia sentido a sua existência. Apesar de toda a violência que intermediava a relação, aquele havia sido o único homem que não havia roubado os pertences que adquiriu por meio de um trabalho que tantas vezes lhe imputou dor e humilhação.

Situação atual

Atualmente, G. mora num albergue e ampara-se muito em sua fé em Deus. Afirma já ter procurado ajuda em igrejas, mas não se sente acolhida porque a condição para ser plenamente recebida seria assumir o gênero masculino. Chora ao dizer que já tentou se atrair sexualmente por mulheres, mas que nunca conseguiu. Deseja muito ser aceita tal como é. Afirma que sua única amiga é uma assistente social que acompanha sua trajetória pelos albergues e pelas ruas de São Paulo. Afirma que vive num ambiente muito hostil, onde todos são potencialmente perigosos. Tem medo de se envolver com novos parceiros, pois já foi vilipendiada de todas as formas por homens no decorrer de sua vida.

De vez em quando sai para tentar conhecer alguém, um possível namorado, mas acredita que não encontrará um homem “à altura” de seu ex-marido. Afirma estar procurando por ele nos homens com os quais se relaciona de forma fugaz quando sai à noite. Conta que ainda sai com alguns homens por dinheiro, mas afirma que o faz a contragosto, devido a sua “fraqueza”. Sente que o crack e a bebida a ajudam a conter a raiva que carrega dentro de si. Diariamente lava a roupa dos outros albergados para conseguir alguns trocados e “ocupar a mente”.

Prefere se isolar durante o dia, porque tem medo de “explodir” frente às costumeiras provocações que recebe. Fica num canto, escrevendo sobre seus sentimentos e desejos em um caderno, feito de “diário”. Sente que os olhares que recebe ora expressam ojeriza, ora expressam desejo. Em ambos os casos, sente que não é verdadeiramente vista, pois tanto a ojeriza quanto o desejo constroem uma “parede” que impede que seja enxergada para além do corpo. A aversão e a cobiça que usualmente desperta desumanizam-na.

Projeções para o futuro

Seu sonho é ganhar na “Tele Sena”, ou ter um golpe de sorte similar, que permita que ela deixe o albergue e possa ajudar os familiares, mesmo que estes a tenham rejeitado. Deseja aprender a lidar com internet algum dia, mas afirma encontrar grande dificuldade, pois não sabe “nem dizer que horas são em relógio de ponteiro”. Quer colocar uma prótese dentária, comprar produtos de beleza para cuidar do rosto e do corpo. Sente falta da época em que se sentia jovem e bonita. Sente falta de ter alguém para quem se embelezar. Deseja muito conquistar uma amizade sincera, mas tem pouca esperança de que isto possa acontecer.

Afirma ter medo de morrer devido à ação do HIV, medo de que a doença se manifeste quando menos esperar. Ao mesmo tempo, toma o antirretroviral com algum descuido, o que atribuiu ao desejo de morrer que às vezes a assalta. O desejo de morrer culminou em quatro tentativas de suicídio (uma vez tentou se jogar em baixo de um carro; em outra amarrou uma corda no pescoço, mas lhe faltou coragem para pular; em outra tomou muitos remédios e sofreu uma lavagem estomacal).

Ao final da entrevista, afirma acreditar que nunca conseguirá ser feliz.

 

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