Guilherme Carvalhal — Devolução

 

 

 

A criança era negra.

Nádia entrou para a sala de parto acompanhada de Roberta. Três anos de casadas. O desejo intenso de terem um filho.

O folder de uma clínica de fertilização. Prometiam crianças saudáveis em um tratamento parcelado em 20 vezes, com todos os pré-natais inclusos mais o parto. Inclusive ganhariam um macacão com o logotipo da empresa bordado.

Um momento singular na vida das duas. O óvulo de Roberta fecundado e inserido no útero de Nádia. A barriga crescendo, os desejos de grávida, os enjoos. Compartilharam cada instante daquela gestação, sempre juntas, sempre se amando.

Isso tudo para não sair conforme o desejado.

Especificaram na clínica que queriam uma criança loira e de olhos azuis. Se possível uma menina, mas explicaram que não chegava a um procedimento de engenharia genética. No caso, selecionariam esperma de um doador com as características físicas desejadas. O restante dependeria da natureza.

Teriam misturado então os fracos de sêmen? Teria um técnico após chegar de ressaca ou brigar com a namorada se descuidado e trocado o frasco de nórdico pelo de africano? Assim, em outro canto, quem esperava um garoto negro também se espantaria com aquela cara branquela?

Podia ser questão de genética mais profunda. Genótipos e fenótipos. Aquele seu tio Everaldo e o cabelo sarará bem que identificam um ancestral negro. Mas poderia um vínculo já distante influenciar dessa forma?

Nádia era filha de pai mulato. Teria o cordão umbilical ou o líquido amniótico influenciado em algo?

Roberta não sabia exatamente como prosseguir. Ligaria para o SAC da empresa e reclamaria da falha? Será que isso se encaixaria em algum mecanismo de devolução? Por exemplo, entregariam aquela criança à mulher que desejava um filho negro e recuperariam o outro?

Havia algum termo no Código de Defesa de Consumidor que as defenderia? Que tal acionar o Procon?

Lembrou daquele quadro do Fantástico em que o InMetro testava uma série de produtos. Pensou na certificação de qualidade dessas clínicas de fertilização. Exigiram carteira de vacinação dos doares, metodologia para envase e armazenamento, com a devida assepsia e criogenia.

Visualizou o bebê portando o selo do InMetro de nascença.

As duas seguraram as mãos. Naquele choque inicial, mal puderam prestar atenção na criança. A enfermeira o levou para o banho e os devidos cuidados com os neonatos. E as mães ali, pensativas, como se não soubessem como amar aquela criaturinha, reticentes quanto aos próprios sentimentos.

Horas mais tarde, o trouxeram para mamar. Quando Nádia o pegou no colo, Roberta se aproximou. A criança deu uma risada, reconhecendo suas mães. Riu de maneira espontânea, sem cócegas nem nada. As duas responderam o riso. Passaram o dedo em sua barriga e subiram até o rosto. Despuseram-se de todas as pretensões e apreensões: sabiam que ali estava seu filho.

 

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