Paula Vigneron — Partes

 

Isaías. parte do complexo escultório “12 profetas”, esculpido em pedra sabão por Aleijadinho (1730/1814), nas escadarias do Santuário de Bom Jeseus de Matosinhos, na cidade mineira de Congonhas (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)

O corpo estava pálido. Mais do que o normal. Atipicamente branco e frágil. A ausência de luz provinha de sua atual condição: morto. Parado. Duro. Frio. Um corpo que, outrora, aquecera o homem que o observava. Esperava movimentos. Reações. Mantinha a esperança. Permanecia a analisá-lo sem desviar o olhar. “Quem sabe ela possa respirar a qualquer momento? Ou mexer as mãos.”

As mãos.

Ainda com unhas ainda pintadas. Pretas e longas. Agora, estavam gélidas e inúteis. Há uns dias, os dedos passeavam pelos cabelos dele e acariciavam sua cabeça. Estava cansado. Dividiam a cama de solteiro de seu quarto. A proximidade dos corpos gerava um calor que, hoje, parecia impossível.
“Eu entendo, mas você precisa buscar novos caminhos. De que adianta insistir no que não te faz bem?”, questionava ela, atenciosa na escolha das palavras. Não queria magoá-lo. Se dissesse que via seus atos como perda de tempo, ele se chatearia. Era calmo, mas, por quaisquer motivos, abandonava a tranquilidade e se tornava agressivo. Não gostava de vê-lo assim.

Tocou a pele da mulher que jazia à sua frente. Pensou, durante muito tempo, em colocar um anel em seu dedo e fazer dela sua esposa. Casar. Viver histórias sob o mesmo teto. Acompanhar os dias bons e ruins. Desistiu após concordar que não foram feitos para o matrimônio.

“Terminaremos em apuros, querido. Prefiro permanecer a vida como está. Compartilhamos afagos descompromissados. Enquanto for bom, ficaremos ao lado do outro”, afirmou.

“E agora, querida, cadê a vida que você queria manter?” Ele continuava à espera de respostas. De que aquilo, em algum momento, seria revertido, e ela retornaria para dar-lhe o colo nos momentos de ansiedade.

O colo.

Quente. As pernas grossas se transformavam em travesseiro. “Largue suas angústias quando passar pela porta, menino”, ela dizia. Mas estava sempre pronta a ouvi-lo e afastar o que lhe fazia mal. Possuía o dom de escutar e enxergar o outro sem pré-julgamentos e pré-conceitos. Mesmo pouco à vontade, era suficientemente delicada para não dispensar os aflitos e atormentados que apareciam, a qualquer hora, e batiam à porta.

“Como você aguentava essas pessoas?”, perguntou, em voz alta. Deveria ter tirado suas dúvidas quando ainda havia tempo. Ela teria respondido cordialmente. Era uma mulher generosa, embora a paciência, por vezes, lhe faltasse. “É por amor. Amor às causas perdidas”, ouviu a voz imaginária. Teriam sido essas as suas palavras? Quais expressões apareceriam em seu rosto enquanto ela interpretava as falas? A boca se esticaria em um sorriso depois do término?

A boca.

Rosada. Por vezes, quase vermelha. Quando sorria, parecia menina. Os traços dos lábios indicavam o humor do dia: quando apertados, apreensão; quando soltos, leveza; se estivessem mais esticados, alegria. Era visível e previsível.

“O que aconteceu?”

“Nada. Por que a pergunta?”

“Seus lábios mostram sua tensão. Você não tem talento para me enganar, minha menina. Tão querida.” E beijou a boca antes retesada. Sorriu em resposta ao ato. Gostava de ser surpreendida. Ele conhecia seus desejos, mesmo que afirmasse o contrário para agradá-la. Batia, de modo delicado, os nós dos dedos quando discordavam dela. Característica percebida por quem a conhecia verdadeiramente.

O corpo.

Tocou boca, mãos, pernas, dedos, colo. Tateava todas as partes desnudadas por ele. Sentia falta da reciprocidade. “Será que, desta vez, ficarei mesmo sozinho?” Uma gota escorria pelo rosto dela. Era dele a lágrima que percorria espaços por onde línguas e lábios e ternura se alternaram. Buscava sinais vitais que abandonaram a mulher há horas, mas ela permanecia na mesma posição.

Um homem, com a voz delicada, pediu licença. Precisava ajeitá-la para a cerimônia. “É a última desta noite. Temos hora para encerrar o expediente”.

Por sua mente, passaram as cenas das últimas noites e sonhos; coxas entrelaçadas, abraços, palavras soltas e planos. “Última desta noite para encerrar o expediente”, sibilou. Despediu-se com beijo. O frio se apossou de seu corpo. Os dois, homem e mulher, mergulhados na apatia. Presente e futuro, agora, conjugados no passado.

 

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