Maracanã, noite de 14 de julho de 1989, sessão dupla do quadrangular da Copa América. O primeiro jogo, iniciado às 19h30, seria Argentina e Uruguai. Na sequência jogariam Brasil e Paraguai. Chegamos eu e meu irmão, Christiano, para assistir a ambos.
Na primeira partida, por conta da rivalidade entre Maradona e Zico pelo posto de grande craque do mundo nos anos 1980, fui pré-disposto a implicar com o 10 argentino. Que realmente não atuava bem. A cada lance seu errado ou infrutífero, não perdia a chance de encher o caso de Christiano com minha passionalidade:
— Tá vendo? Como é que pode jogar mais que Zico?
Até que, aos 33 do primeiro tempo, Maradona mete uma bola longa de canhota, do meio de campo. Sem ninguém da Argentina no ataque, antes mesmo do lance ser concluído, praguejei:
— Não tô dizendo? Lançou pra mãe dele!
Aí, a bola foi descendo a parábola, caindo, caindo, enquanto o goleiro uruguaio Zeoli, que estava adiantado, corria desesperado de costas. Caprichosa, a bola bateu no travessão.
Christiano olhou para mim investido com uma moral maior que o Maracanã. Calei a boca, abaixei a cabeça com a cara ardendo de vergonha e me levantei para bater palmas ao lance genial, como todos os 45 mil torcedores presentes ao estádio. Enquanto Maradona socava o gramado pela bola não ter entrado.
O Uruguai venceria aquele jogo, com dois gols do veloz e driblador atacante Rubén Sosa. Mas eu tinha aprendido a lição: nunca mais questionaria o gênio de Maradona.
Buenos Aires, tarde de 23 de maio de 2003. Em um ônibus de turismo, que parou rapidamente no tradicional bairro de La Boca, bairro do Boca Juniors. Eu e Christiano descemos e fomos correndo até uma das estátuas de Maradona que se espalham no reduto portenho. E, diante de uma delas, passei a inclinar tronco, cabeça e braços em reverências, como um islâmico a Alá.
Christiano, surpreso, indagou:
— Você? Reverenciando Maradona?
Ao que respondi:
— Cala a boca! Zico é o Rei! E se o Rei admitiu que Maradona jogou mais do que ele, eu estou errado e o Rei, certo!
Acompanho futebol desde o Campeonato Brasileiro do Flamengo de 1980. De lá para cá, o que Maradona fez no campo do Estádio Azteca, na Cidade no México, numa ungida tarde de 22 de junho de 1986, nas quartas-de-final contra a Inglaterra, foi a maior atuação que vi de um jogador em Copa do Mundo. Cercada da grande tensão adicional de ter sido quatro anos após a derrota humilhante da Argentina para a Grã-Bretanha na Guerra das Malvinas.
Após um primeiro tempo sem gols, Maradona abriria o placar logo aos 5 minutos do segundo. Após a bola ser levantada dentro da área pelo atacante Valdano, o 10 argentino usou a mão para encobrir o goleiro Peter Shilton. Apesar das reclamações dos ingleses, o gol foi validado pelo árbitro tunisiano Ali Bin Nasser, em tempos pré-VAR. O autor do gol diria que foi “a mão de Deus”. Como era Maradona, Deus usou a mão canhota.
Mas a obra realmente divina viria no segundo gol. Após receber um passe despretensioso do meia Enrique, antes do meio de campo, Maradona disparou na vertical, driblou cinco ingleses, dois deles duas vezes, inclusive o goleiro Shilton, antes de deixar a bola nas redes.
Após o cruzamento do atacante Barnes, o centroavante Gary Lineker diminuiria de cabeça o placar, aos 35 minutos. Terminaria aquela Copa como seu artilheiro, apesar da desclassificação para a Argentina, que seria campeã na final contra a Alemanha (então Ocidental), após outro show do 10 argentino na semifinal contra a Bélgica. Mas Lineker diria sobre aquela obra de arte de Maradona contra a Inglaterra, considerado o gol mais belo da história das Copas:
— Pela primeira vez na minha carreira tive vontade de aplaudir o gol de um adversário!
Em clubes, após o começo no Argentinos Juniors, jogou pelo Boca Juniors, onde terminaria a carreira em 2001 para consolidar a condição de maior ídolo do clube. Mas, internacionalmente, após uma passagem frustrada no Barcelona, onde começou seu vício em drogas, brilharia no Napoli, ao lado de dois brasileiros: o centroavante Careca e o volante Alemão, titulares da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1986 e 1990.
Juntos, Maradona, Careca e Alemão comandariam o time do sul da Itália na conquista de dois Campeonatos Italianos, em 1987 e 1990. Títulos com os quais os três sul-americanos recuperariam a autoestima dos italianos do sul, mais pobres que seus muitas vezes preconceituosos compatriotas do norte. Mais ou menos como os bolsonaristas da burguesia acéfala do Sudeste e Sul fazem com os nordestinos no Brasil.
Do tempo em que o melhor jogador de futebol da Terra só era eleito após cada Copa do Mundo, de quatro em quatro anos, Maradona foi escolhido, como não poderia deixar de ser, em 1986. O que ele fez no México, onde brilhou em um time apenas regular, só pode ser comparado ao que Mané Garrincha havia feito na Copa do Mundo de 1962, no Chile, e ao que Zinédine Zidane faria depois na Copa do Mundo da França, quando bateu o Brasil na final, em 1998.
Maior jogador da história do futebol — a não ser para os argentinos —, Pelé nunca teve um protagonismo tão destacado em Copas do Mundo, apesar de ter vencido três, jogando muito bem em duas. Após a morte de Maradona na tarde de hoje, aos 60 anos, de parada cardiorrespiratória, em Tigre, nos arredores de Buenos Aires, seu “rival” Pelé publicou em seu perfil no Instagram:
— Que notícia triste. Eu perdi um grande amigo e o mundo perdeu uma lenda. Ainda há muito a ser dito, mas, por agora, que Deus dê força para os familiares. Um dia, eu espero que possamos jogar bola juntos no céu.
Meu pai, ex-boleiro e campeão juvenil de Campos pelo seu Rio Branco, dizia que entre os grande camisas 10 que viu jogar, depois de Pelé, completo nas duas pernas, os dois melhores foram dois canhotos: Diego Armando Maradona e o lendário húngaro Ferenc Puskás — cujo nome hoje batiza o prêmio da Fifa dado ao gol mais belo marcado no futebol do mundo em cada ano. Quando eu insistia em perguntar quem, entre os dois, foi o melhor, o velho Aluysio só fazia a distinção:
— Jogando para o time, Puskás! Jogando para ele, Maradona!
Foram dois jogadores de uma perna só, pela qual Maradona teria como grande ídolo outro grande canhoto: o 10 brasileiro Roberto Rivelino. Com a perna direita “cega” e um Michelangelo esculpindo na esquerda, o argentino tinha uma característica muito particular em seu futebol de exceção: quando chegava à ponta direita e tinha que cruzar a bola para a área, sem a destra, cruzava de letra com a canhota.
Era uma madrugada brasileira de 17 de novembro de 2006, quando morreu Puskás, que meu pai comparava a Maradona. E escrevi ao gênio húngaro um poema, que hoje adapto para me despedir de outro gênio da bola, ídolo maior da Argentina, que viveu e morreu como um tango:
diego morreu
correu o prata
desaguou no mar
e virou só lenda
agora nenhuma rede
conterá seu gol
estrela cadente
de canhota
Para idolatrar o Maradona só podia ser flamenguista e provavelmente é PTista porque mencionou os Bolsonaristas de forma preconceituosa. Triste.
Caro Vitor,
Se para reconhecer o gênio de Maradona nos campos é preciso ser flamenguista e petista, admito: respectivamente, sou mais que Zico e Lula. Quanto ao preconceito, repito a você o que o ex-presidente FHC respondeu à então presidente Dilma Rousseff, quando esta disse que a corrupção no Brasil seria antiga, enquanto o governo do PT era assolado por denúncias de corrupção endêmica: “Bate a carteira e grita: pega ladrão!”.
Grato pela tabela!
Aluysio
Diego Maradona craque, um dos melhores camisa 10 que eu tive o privilégio de assistir jogando futebol.