Em 2018, favorito nas pesquisas para ganhar as eleições presidenciais, Jair Bolsonaro já fazia campanha pelo voto impresso. Que manteve, mesmo após se eleger presidente da República nas urnas eletrônicas. Estas começaram a ser maciçamente adotadas no Brasil nas eleições municipais de 1996, sem nenhum caso de fraude comprovado de lá para cá. Em maio, quando todas as pesquisas as pesquisas presidenciais apontam a possibilidade de derrota de Bolsonaro em 2022, ele recrudesceu seu discurso: “se não tiver voto impresso, é sinal que não vai ter eleição! Acho que o recado está dado”, ameaçou no dia 6. A bandeira já havia sido hasteada na proposta de emenda constitucional (PEC) 135, apresentada em setembro de 2019 pela deputada federal bolsonarista Bia Kicis (PSL/DF). Onde propõe: “é obrigatória a expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas, de forma automática e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria”. O eleitor poderia conferir se o voto impresso é o mesmo dado na urna eletrônica, mas não ficaria com uma cópia. A Folha buscou a análise de juristas e cientistas políticos sobre essa possibilidade de mudança.
Em ordem alfabética, foram ouvidos a promotora eleitoral Anik Assed, o advogado Cristiano Miller, professor do Uniflu e presidente da OAB-Campos; o cientista político Hugo Borsani, professor da Uenf; o chefe de cartório do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) Marcelo Bessa Cabral; o promotor eleitoral Victor Queiroz; e o cientista político Vitor Peixoto, outro professor da Uenf. Alguns deles também analisaram a declaração do presidente Bolsonaro, dando conta que, se aprovada no Congresso, a PEC não precisaria passar pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Que já barrou iniciativa de teor semelhante na minirreforma eleitoral brasileira de 2015. À época, a alteração foi considerada inconstitucional pelo STF, por violar o sigilo do voto. Agora como PEC, tem caminho complexo para tentar atingir os 3/5 da Câmara e do Senado necessários à sua aprovação. Ministro do STF e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso disse da possibilidade de adoção do voto impresso: “vai criar o caos”.
— Após ensaios frustrados para a obrigatoriedade de impressão do voto, dentre os quais a minirreforma eleitoral, mais uma tentativa ganhou corpo com a PEC 135, de autoria da deputada aliada ao presidente Jair Bolsonaro, Bia Kicis. Não obstante os comentários que consideram a “obsessão” pelo voto impresso justificativa antecipada para eventual derrota à reeleição, não se pode ignorar que a sua defesa pelo presidente Bolsonaro é antiga, inclusive em 2018, ao ganhar as eleições. É incontroversa a eficiência do sistema, protegido por mais de 30 camadas de segurança, com possibilidade de ser submetido a mais de 10 formas de auditoria. A despeito da impressão do voto constituir mais uma forma de controle da lisura do pleito, inclusive pelo próprio eleitor, muitos são seus aspectos negativos. Além do alto custo, dúvidas sobre o sigilo do voto. Certo é que, há mais de 24 anos em uso, o sistema eletrônico eleitoral não conta com registros de fraude comprovada. Se aprovada no Congresso a PEC, sua inconstitucionalidade não estará imune de ser apreciada pelo STF — ponderou a promotora eleitoral Anik Assed.
— Uma vez mais, a postura do presidente Jair Bolsonaro se mostra despida da mínima fundamentação. Apesar de o tema não ser novo, parece-me faltar razoabilidade nessa discussão, agora em virtude de uma PEC. A fala dos defensores do voto impresso é exclusivamente calcada na suposta existência de fraude nas urnas eletrônicas, o que, na visão deles, seria coibido pelo voto impresso. Mas, devemos perguntar: que fraude? Quantas fraudes foram comprovadas desde o ano de 1996, quando o voto eletrônico começou a ser utilizado no Brasil? A resposta é simples: nenhuma fraude foi comprovada até hoje envolvendo as urnas eletrônicas. O Brasil é internacionalmente conhecido por ter um dos mais eficazes sistemas de votação eletrônica do mundo. O retorno ao voto impresso significaria um retrocesso, com a fragilização do sigilo do voto, o aumento dos gastos eleitorais e o risco maior de judicialização das eleições, como já destacou o ministro (do STF e TSE) Luís Roberto Barroso — lembrou o advogado Cristiano Miller.
— Em todos os anos que vem sendo implementado o voto eletrônico no Brasil, não há evidências que permitam levantar dúvidas sobre sua confiabilidade. O próprio presidente Jair Bolsonaro foi eleito por esse sistema. A única suspeita levantada foi por Aécio Neves (PSDB) na sua derrota (no segundo turno presidencial) de 2014, sem razões fundadas, aliás. A campanha do presidente visa desprestigiar o voto eletrônico, ante uma possível derrota nas próximas eleições, estabelecendo as bases para algum tipo de confusão, podendo eventualmente gerar protestos violentos como os vistos no Capitólio americano na eleição de Biden. Não é certa a derrota de Bolsonaro, mas sua contínua queda de aprovação nas pesquisas de opinião, e o forte apoio ao ex-presidente Lula (PT), fazem crescer essa possibilidade. O paralelo com a campanha de Trump contra o voto pelos correios é tal que faz pensar que é nela que o presidente e seu círculo mais próximo se inspiram. Porém, diferente de Trump, que manteve alta aprovação até o final, o apoio a Bolsonaro não deve se manter nos níveis de 2018. E ele sabe disso — apontou o cientista político Hugo Borsani.
EUA/Brasil
A despeito da sorte da PEC no Congresso e no STF, muitos analistas acusam Bolsonaro de tentar acender na sociedade brasileira uma polêmica semelhante à da sua principal referência: o ex-presidente dos EUA Donald Trump. Acima e abaixo do Equador, seria uma maneira de tentar criar uma atenuante prévia à derrota nas urnas. Na eleição à Casa Branca de 2020, diante de todas as pesquisas que projetavam a vitória de Joe Biden, Trump passou a pregar “fraude” nos votos pelos correios. Que eram estimulados pela oposição por serem mais seguros na pandemia da Covid-19. Confirmadas as pesquisas, Biden venceu o pleito de 3 de novembro por larga margem: 306 votos contra 232 no colégio eleitoral, com mais de 7 milhões de vantagem no voto popular. O resultado só seria oficializado em 7 de novembro, quatro dias após a votação, justamente pela demora na apuração imposta por cédulas impressas. Sem admitir a derrota, apresentar uma única prova de fraude ou lograr êxito em nenhuma das suas 50 ações judiciais, Trump insistiu nas falsas acusações. Até estimular com elas seus seguidores à inédita invasão do Capitólio em 6 de janeiro, deixando cinco mortos, entre eles um policial.
Em 15 de dezembro, mais de um mês após endossar publicamente as acusações de “fraude” de Trump e do substituto deste na Casa Branca ser oficialmente anunciado, Bolsonaro seria o último líder do G-20 a parabenizar Biden pela vitória nas urnas. Os votos pelos correios que ajudaram a defini-la são usados nas eleições presidenciais dos EUA desde 1864. Menos antigo, mas nem por isto novo, o “uso de máquinas eleitorais” no Brasil já estava previsto no artigo 57 do seu Código Eleitoral de 1932, que criou a Justiça Eleitoral no país. Foi 64 anos antes do avanço da tecnologia finalmente permitir sua adoção. Pela qual o Brasil se tornou referência internacional. Assim como já foi um dia por seus programas nacionais de vacinação.
— Antes de qualquer coisa, deixo claro que minhas respostas têm cunho meramente acadêmico, não refletindo o posicionamento do TRE/RJ a respeito do tema. Quem conhece por dentro o sistema eleitoral brasileiro, sua qualidade e sua seriedade, normalmente será contra a ideia do voto impresso. As pessoas agem como se o voto eletrônico não pudesse ser auditado, quando o mesmo pode e é auditado antes, durante e após a eleição. Existem inúmeros procedimentos abertos à sociedade que comprovam a lisura do voto eletrônico. Nenhum outro país do mundo tem o resultado de uma eleição para 140 milhões de eleitores divulgado poucas horas após o fechamento das urnas. Isso é um mérito do Brasil. Os últimos registros de fraude eleitoral no país são de antes da adoção da urna eletrônica: depois dela nunca houve tal notícia. No dia da votação temos a presença de mesários, fiscais, eleitores, juízes, promotores, servidores. São mais de 2 milhões de pessoas trabalhando na eleição, mais de 5 mil só em Campos, e nunca houve denúncia de fraude — exemplificou, como jurista, o servidor do TRE Marcelo Bessa Cabral.
— Seria ingenuidade não reconhecer possibilidade de correspondência entre o esperneio do ex-presidente Trump e a campanha contra o voto exclusivamente eletrônico no Brasil. Aliás, a ineficácia do aludido esperneio bem que poderia servir de exemplo ao Brasil, que já conta com eficiente sistema de fiscalização do resultado das eleições, independentemente da desnecessária e dispendiosa adoção do voto impresso. Trata-se de iniciativa legítima do ponto de vista democrático, capitaneada por membros do Legislativo. Mas já há previsão normativa de auditoria prévia, a cada eleição, das urnas eletrônicas e de sua alimentação, tudo à disposição dos partidos e dos candidatos, além da OAB, do Ministério Público Eleitoral e de todos os demais agentes de fiscalização do processo eleitoral. Mesmo assim, não há registros comprovados de fraude eleitoral por meio das urnas eletrônicas. É um sintoma claro de que o sistema eletrônico atual é plenamente confiável. Seria mais proveitoso criar mecanismos mais rigorosos de combate à compra de votos e à disseminação das fake news na propaganda eleitoral — sugeriu o promotor eleitoral Victor Queiroz.
— São recorrentes os ataques às instituições democráticas brasileiras por parte do presidente da República como estratégia política para desviar a atenção dos eleitores. A campanha contra o voto eletrônico é uma tentativa neste sentido, quando fica cada vez mais claro o desastre causado pela ação criminosa do governo federal na pandemia. Também é uma mimetização das estratégias fracassadas do ex-presidente Donald Trump. E quanto mais próximo da derrota eleitoral, mais intensificados serão os ataques às instituições democráticas como forma de permanecer no poder, ou mesmo justificar que foram derrotados por uma disputa cujas regras não são limpas. Quando estabelecida, em 1996, a urna eletrônica tinha três objetivos: evitar fraudes na contagem dos votos, agilizar a apuração e facilitar a escolha dos eleitores. Obteve êxito absoluto em todos os quesitos. É o ícone do Brasil que deu certo. Nada poderia ser mais simbólico do que o ataque à urna eletrônica neste momento, pois representa a modernidade contra a qual o movimento negacionista presidencial se opõe — concluiu o cientista político Vitor Peixoto.
Histórico impresso
Em 21 de agosto de 1993, o Jornal do Brasil publicava uma denúncia feita no Clube Militar pelo então deputado federal de primeiro mandato Jair Bolsonaro: “Esse Congresso está mais do que podre. Estamos votando uma lei eleitoral que não muda nada. Não querem informatizar as apurações pelo TRE”. Já em 17 de novembro de 1994, o mesmo Jornal do Brasil noticiava: “Na 24ª (zona eleitoral), o juiz Nelson Carvalhal descobriu quatro cédulas falsas. Beneficiavam os candidatos a deputado federal Jair Bolsonaro (PRP), Álvaro Valle (PL), Vanessa Felipe (PSDB) e Francisco Silva (PP)”. Sem se beneficiar da irregularidade, Bolsonaro se reelegeu pela primeira vez à Câmara Federal no pleito daquele ano, que chegou a ser anulado pelo TRE e depois validado pelo TSE. Os votos ainda eram impressos.
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