A operação Chequinho foi deflagrada em Campos no ano das eleições municipais de 2016, a partir da denúncia de assistentes sociais concursadas da Prefeitura, sobre distribuição sem critérios técnicos do antigo benefício do Cheque Cidadão para compra de voto. Gerou prisões de políticos, duas só ao ex-governador Anthony Garotinho (hoje, União), e de integrantes do governo Rosinha Garotinho (hoje, União). E alterou a composição da Câmara Municipal na Legislatura passada. Passados seis anos, ela parece mais perto do fim depois do julgamento pela nulidade das provas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no último dia 1º. Mas, mesmo assim, continuou cercada de polêmica: após o placar da segunda turma do STF indicar a validade das provas por 3 a 2, o ministro Nunes Marques primeiro retirou seu voto, para no mesmo dia votar pela nulidade. Como isso se explica? Qual o saldo da Chequinho? Ela seria possível sem o contexto nacional da Lava Jato, iniciada em 2014? E as acusações de “perseguição política” de Garotinho? Em busca de respostas, a Folha ouviu, em ordem alfabética, os advogados Carlos Alexandre de Azevedo Campos, ex-assessor do STF; Felipe Drummond, especializado em Direito Criminal; Pryscila Marins, especializada em Direito Eleitoral; e o promotor de Justiça Victor Queiroz, que participou da Chequinho.
Folha da Manhã – Deflagrada nas eleições municipais de Campos em 2016, gerando condenações com prisões em ações criminais e eleitorais, que saldo faz hoje da operação Chequinho?
Carlos Alexandre de Azevedo Campos – À época, houve de fato um aumento exponencial do número de beneficiários do programa social envolvido, o que deflagrou a ação do MP em razão do uso de dinheiro público para “compra” de votos. Hoje, a condenação foi revertida por uma questão técnica: falta de perícia. Acho que o saldo tem duas vertentes: uso de política social como meio de conquistar votos é crime, e isso vale a todas as esferas; e que o MP e o Judiciário não podem deixar quaisquer dúvidas para a condenação. Nesse último ponto, os desmandos da Lava Jato abriram diferentes pontos de precedentes para nulidades.
Felipe Drummond – Difícil emitir opinião sem conhecer os autos do processo. Operações como a Chequinho e semelhantes marcam uma atuação de mais austeridade estatal com relação a acusações de má gestão da coisa pública. Por outro lado, frequentes desdobramentos desses casos indicam que os órgãos de persecução penal e do Judiciário ainda precisam conter o ímpeto punitivo e amadurecer nos direitos e garantias à realização de julgamentos mais seguros.
Pryscila Marins – A Chequinho foi deflagrada para impedir que o abuso do poder econômico e o uso da máquina pública influenciassem no resultado do pleito. Em que foi bem-sucedido, ao menos no primeiro momento. Mas seis anos após a operação, com as reviravoltas que o processo vem sofrendo constantemente, sem uma definição, fica a sensação de insegurança jurídica que pode gerar efeitos reversos para os próximos pleitos, como a vitimização.
Victor Queiroz – Não me parece possível identificar um saldo matemático, exato. O fato é que operações como a Chequinho servem ao amadurecimento das instituições e, de modo didático, ao avanço civilizatório, para que todos renovem algumas convicções. A saber: a de que a lisura do processo eleitoral é essencial à democracia e de que não vale a pena subverte-lo. E a de que a intervenção judicial no processo eleitoral é apenas um sintoma de que a sociedade está adoentada, além de dever ser feita em caráter excepcional, ainda que por vezes necessária.
Folha – A Chequinho nasceu de assistentes sociais da Prefeitura que denunciaram a subversão dos critérios técnicos para crescer, a toque do caixa eleitoral de 2016, o benefício do Cheque Cidadão. Operações como essa são possíveis sem a denúncia de dentro?
Carlos Alexandre – Por dever legal de transparência, como ocorre com toda e qualquer forma de execução orçamentária, esses dados, como o número de beneficiários e o volume de recursos envolvidos, devem ser disponibilizados mensalmente no site da Prefeitura ou por outro meio de comunicação. De posse desses números, e identificada a evolução, todo cidadão poderia realizar tal denúncia. Às vezes, falta transparência, às vezes, interesse da população em investigar.
Felipe – Delações e notícias de integrantes de órgãos públicos podem ser importantes meios de obtenção de prova. Entretanto, não são a única forma de apuração. Órgãos de fiscalização como os Tribunais de Conta e o Ministério Público são relevantes instrumentos de controle que, com atuação devida, podem identificar desvios e instaurar investigações pertinentes. As informações de dentro facilitam as apurações e fornecem direcionamento, mas não são a única solução.
Pryscila – A Justiça Eleitoral tem o poder fiscalizatório a fim de proteger a legitimidade do pleito. No entanto, é muito difícil chegar a um ilícito eleitoral sem uma denúncia, pois muitas das vezes a clandestinidade é a válvula propulsora desses crimes. No caso da operação Chequinho, a denúncia partiu “de dentro”, porém poderia ter surgido de adversários políticos, uma vez que é extremamente comum a fiscalização entre eles, o que move inúmeras ações na seara eleitoral.
Victor – Pessoas que fazem parte do aparato estatal e que presenciam práticas delitivas no âmbito da administração pública podem e devem noticiar eventuais malfeitos. É um dever. Ainda que eventuais notícias não venham “de dentro”, certamente testemunhos “de dentro” são importantes para a devida apuração dos fatos e para o descobrimento da verdade.
Folha – A Chequinho veio após operação Lava Jato de 2014. Que, por sua vez, foi inspirada Mãos Limpas da Itália, de 1992. A primeira redundou no governo Rafael Diniz; a segunda, no governo Jair Bolsonaro; a terceira, no governo Silvio Berlusconi. Politicamente, qual o saldo?
Carlos Alexandre – Acho que a eleição de alguém fora dos grupos tradicionais de poder responde a uma variedade de fatores, e não apenas a operações policiais e judiciais da espécie. Mas é claro que possui grande peso, ao lado da economia, da saturação pela falta de alternância do poder, de viradas ideológicas. Resta saber se o “pesadelo Bolsonaro” não fez com que o eleitor mediano não repensasse o peso que deve dar a operações como a Lava Jato.
Felipe – Há uma tendência de mais rigor na fiscalização para responsabilizar os acusados de práticas ilícitas. Isso inspira mais cuidado e desmotiva posturas inidôneas perceptíveis. Entretanto, seus desfechos indicam uma impulsividade persecutória açodada que não respeita adequadamente os limites constitucionais e legais. A pretexto de punir desvios, o Estado não violar direitos, sob pena de tornar o processo inócuo até para as pretensões punitivas.
Pryscila – Não acredito que a eleição dos representantes citados seja fruto direto de operações que descortinaram abuso de poder e corrupção, mas sobretudo na soma de vários outros fatores e, principalmente na rejeição de modelos de governos já postos, o que demonstra a fragilidade da capacidade de escolha. Isso porque, o eleitor deixa de escolher quem ele gostaria que o representasse para escolher aquele que vai derrotar quem ele não quer que o represente.
Victor – Espero que seja o amadurecimento dos atores políticos e especialmente do eleitorado, em prol do aperfeiçoamento da cidadania, da consciência dos eleitores, do pluralismo político e da probidade administrativa.
Folha – Essa acusação, de que a Chequinho teria sido montada por “perseguição política” e para favorecer a eleição de Rafael prefeito em 2016, foi feita pelo ex-governador Anthony Garotinho, apontado como chefe do “escandaloso esquema” revelado. Como você vê?
Carlos Alexandre – Vejo como normal a reação, o que não significa que seja correta. É o discurso padrão do populismo: sou sempre perseguido. A Chequinho teve um indício objetivo, numérico: o aumento, sem critérios, em ano eleitoral, de beneficiários de programa social. Havia interesse público? Improvável. Interesse particular do grupo que concorria. A resposta nunca é demonstrar o interesse público, e sim cogitar de perseguição.
Felipe – Não conheço o processo para emitir opinião sobre alegações de perseguição política. A defesa do acusado pode alegar, no processo penal, tudo que entende violar o seu direito, inclusive motivação inidônea da tese acusatória. Por outro lado, investigações criminais e o processo judicial jamais devem servir a interesses políticos. Cabe ao Judiciário observar a higidez do processo e anular, a qualquer tempo, qualquer violação de direitos que identifique.
Pryscila – A Chequinho denunciava um incremento significativo no programa social próximo às eleições, o que é vedado pela legislação eleitoral. Caracteriza abuso do poder econômico, além de apontar que o benefício não era concedido de acordo com estudo social realizado por assistente social. E isso não é perseguição política, tampouco favorecer candidato, mas desrespeito à lei que poderia viciar a vontade do eleitor, deslegitimando o pleito.
Victor – É compreensível e legítimo que pessoas submetidas à persecução penal também se defendam com argumentos ad hominem (falácias “contra a pessoa”), buscando desmerecer os seus acusadores ou menoscabando a motivação das acusações. O argumento da “perseguição política” faz parte do direito à ampla defesa e, em geral, tanto mais é invocado quanto menos argumentos o acusado tem ao mérito das acusações. O importante é respeitar o princípio do devido processo legal e saber que acusações de “perseguição política” também podem levar à responsabilização de quem as faz, se comprovadamente levianas.
Folha – A Chequinho e a Mãos Limpas não cometeram o mesmo erro aparente da Lava Jato, que foi personificar a operação em um “herói”. Como foi o caso do ex-juiz federal Sérgio Moro, hoje visto por muitos como “vilão”. Vaidade e Direito deveriam andar separados?
Carlos Alexandre – Não teria Sergio Moro, desde sempre, um projeto pessoal, político ou STF? Acho que pensavam no PSDB ocupar o vácuo que seria deixado pelo PT, apesar do Gilmar Mendes, indicado por FHC, ter sido sempre crítico da Lava Jato. Acho que foi ambição, e não vaidade pura. Mas, sim, Direito e vaidade estão quase sempre juntos, o que não deveria ocorrer.
Felipe – Sempre devem andar separados, em especial quando se considera o ofício de julgar. O magistrado não pode querer ser mais importante que sua própria função, sob pena de produzir injustiças, ao invés de assegurar direitos. A espetacularização de julgamentos, especialmente os criminais, se dá ao custo da realização da Justiça. Os direitos do acusado são violados e a sociedade também é deixada desprotegida, pois os processos deixam de atender à finalidade.
Pryscila – O Judiciário precisa ser imparcial, não pode e nem deve, sob pena de nulidade, divorciar-se desse princípio. Quando a vaidade contamina o julgamento, o que temos não é a justiça sendo feita, mas direitos sendo violados. O processo possui regras que precisam ser observadas para garantir devido processo legal. Quando há vaidade, o desrespeito a procedimentos acaba fragilizando a investigação e anulando o julgamento.
Victor – A vaidade é, em excesso, germe da quebra da legitimidade da atuação do sistema de Justiça. A vaidade extrema, por acentuar a pessoa em detrimento do senso de justiça, cria o risco de os fins justificarem os meios. Daí a importância da observância do devido processo legal e da impessoalidade da atuação dos operadores do Direito. Quanto menos estes se exibirem, melhor. A história nacional recente é pródiga em exemplos.
Folha – Juiz de Campos que decretou a prisão de Garotinho tanto na Chequinho, quanto na operação Caixa d’Água, Glaucenir Oliveira foi afastado da função pelo CNJ após ter um áudio vazado com críticas ao ministro Gilmar Mendes, do STF. Como você viu o episódio?
Carlos Alexandre – O Dr. Glaucenir tem todo o direito de pensar o que quiser sobre decisões de Tribunais Superiores. O direito de crítica intelectual deve ser absoluto. Porém, é necessário saber onde e como expressar essa opinião. A era digital criou uma terra de ninguém, onde não estamos seguros acerca do alcance do que fala, do que expõe. Vivemos tempos da necessária cautela. Mas não vejo mais qualquer razão à manutenção do seu afastamento.
Felipe – Não se pode tolher o direito de um juiz manifestar sua opinião pessoal em um grupo privado de aplicativo de mensagens. Mas há limites ao direito de expressão, em especial quando se considera a conduta de um membro da magistratura em relação à idoneidade de outro magistrado, já que as críticas não se limitaram à suposta inadequação das suas razões de decidir. De todo modo, a pena de afastamento das funções me pareceu exagerada para a hipótese.
Pryscila – Vivemos em um estado democrático de direito, onde o direito à livre manifestação de pensamento deve ser respeitado. Muito embora as críticas feitas tenham sido ásperas, entendo que foram feitas em um círculo fechado de aplicativo de mensagens, cuja manifestação se deu enquanto cidadão. Os ministros do STF, hoje conhecidos devido à exposição nos meios de comunicação, são pessoas públicas. E, como tal, estão sujeitos a críticas aos seus atos.
Victor – Tenho um apreço especial pelo juiz Glaucenir Oliveira, razão pela qual não me sinto à vontade para responder ao questionamento.
Folha – Alvo de críticas, o STF justificou parte delas com o ministro Nunes Marques, que primeiro retirou voto anterior pela validação das provas da Chequinho, só após esta alcançar 3 a 2 favoráveis na 2ª turma, para depois muda-lo pela nulidade? Como explicar isso?
Carlos Alexandre – Um problema do plenário virtual do STF, onde ministros não precisam lançar o seu voto, mas apenas indicarem se acompanham o relator ou divergem. Se divergirem, aí sim precisam justificar. Pelo que eu soube, o ministro Nunes Marques divergiu desde o primeiro momento, mas teria ocorrido um erro do sistema que o colocou como acompanhando o relator. Erros da espécie são raros, mas podem ocorrer realmente
Felipe – A assessoria do STF afirmou que não houve modificação no voto do ministro Marques. O posicionamento teria sido lançado equivocadamente no sistema, uma vez que, desde o início, teria votado dando provimento à nulidade. Entretanto, até o resultado oficial do julgamento, os ministros podem mudar o voto. É normal acontecer, por exemplo, quando um magistrado se convence de que os argumentos lançados em decisão de um colega seriam mais adequados.
Pryscila – O papel mais difícil é explicar que cada julgador possui independência para julgar de acordo com a sua convicção, principalmente quando casos semelhantes tem tratamentos diversos. Isso não quer dizer favorecimento a ninguém, mas simplesmente que um jurista possui entendimento diverso do outro; por isso vence a maioria. O grande problema, hoje em dia, é o julgamento popular que, isento de amarras processuais, quer pautar o julgamento jurisdicional.
Victor – Essa perplexidade parece ter sido causada pelo mecanismo do julgamento virtual, no qual os ministros do STF não apresentam seus votos presencialmente ou ao mesmo tempo. Isso agiliza os julgamentos, mas pode dar margem a equívocos e mudanças que soam surpreendentes, sem o debate verbal e de imediato dos julgamentos presenciais. O ministro Marco Aurélio, hoje aposentado, sempre foi crítico do julgamento virtual.