Histórico é um adjetivo geralmente vulgarizado para classificar fatos do presente ou passado recente. Tanto mais no futebol, quase sempre movido pela paixão. Sobretudo à maioria que supõe que o esporte passou a existir a partir do próprio nascimento e sua tomada de consciência dele. Só quando os ainda não nascidos analisarem os fatos e feitos de hoje, e quem os viveu pulsante nas veias for só nome numa lápide, se terá a perspectiva histórica. Ainda assim, talvez não haja exagero ao afirmar: a final da Copa do Mundo de 2022, no Qatar, vencida no último domingo (18) pela Argentina de Lionel Messi sobre a França de Kylian Mbappé, na disputa de pênaltis (4 a 2), após o empate de 2 a 2 no tempo normal, 3 a 3 na prorrogação, foi a maior em seus 92 anos de história.
DUELO FINAL DOS CRAQUES — Desde que a primeira final de Copa do Mundo foi sediada e vencida em 1930 pelo Uruguai, por 4 a 2, contra a mesma Argentina, muitas finais foram protagonizadas no enfrentamento entre dois grandes craques. Ali, foram o uruguaio Héctor “El Mago” Scarone e o argentino Guilhermo “El Infiltrador” Stábile. Como seriam as finais de 1974 entre a Alemanha de Franz Beckenbauer e a Holanda de Johan Cruijff, de 1994 entre o Brasil de Romário e a Itália de Roberto Baggio, ou a de 1998 entre a França de Zinédine Zidane e o Brasil de Ronaldo Fenômeno. Mas nunca o futebol tinha visto uma disputa com tanto brilho de lado a lado como a final entre Messi e Mbappé.
MESSI x MBAPPÉ — Se os camisas 10 da Argentina e da França chegaram à final empatados na artilharia, com cinco gols cada, os três que Mbappé marcou no domingo, dois de pênalti e o do belo voleio entre eles, deram a ele oito como maior goleador do Qatar. Messi marcou “só” dois gols na final, um de pênalti e outro de oportunismo dentro da área. Como, então, terminou eleito com justiça o maior craque do Mundial?
GOLS EM TODAS AS ELIMINATÓRIAS — Primeiro porque o craque francês passou em branco nas quartas contra a Inglaterra e na semifinal contra o Marrocos. E o argentino balançou as redes adversárias em todos os jogos da fase eliminatória. Na qual nunca tinha marcado, uma vez sequer, em todas as quatro Copas anteriores de que participou. Mesmo a de 2014, quando chegou à final que a Alemanha levou por 1 a 0, e foi também eleito o melhor jogador.
ARCO E FLECHA — Além de mais constante do que Mbappé como goleador no mata-mata, Messi se mostrou um jogador mais completo no Qatar. Que soube também ser arco, não só flecha. Com três assistências a gol, ele terminou a Copa na liderança da estatística mais altruísta do jogo, empatado com o francês Antoine Griesmann, o inglês Harry Kane, o português Bruno Fernandes e o croata Ivan Perisic.
DI MARIA — Mais solidário em seu futebol, Messi teve a retribuição dos seus companheiros na final. Cuja primeira etapa do tempo normal foi marcada pela grande atuação do veterano atacante Ángel Di Maria, que voltava do banco após contusão. E, num lance de gênio fora do campo do jovem treinador Lionel Scaloni, deixou atônita a França do técnico Didier Deschamps. Que não se preparou para escalação mais ofensiva e “invertida” da Argentina, com Di Maria caindo pela esquerda, lado oposto ao que costuma jogar.
NÓ TÁTICO E MEIO DE CAMPO — A quem já ouviu falar em nó tático, sem nunca saber o que é, foi exatamente isso que Scaloni — xará de batismo de Messi e seu conterrâneo da cidade de Rosário — fez com Deschamps no primeiro tempo da final. Cujo resultado se deu também pelo domínio argentino do meio de campo, com excelentes atuações do menino Enzo Fernández, de Rodrigo De Paul em seu melhor jogo na Copa, assim como do incansável Alexis Mac Allister.
ABERTURA DO PLACAR — Aos 20 minutos, Di Maria driblou o atacante Ousmane Dembélé na esquerda para penetrar na área e sofrer o pênalti do francês. Messi converteu com categoria, goleiro Hugo Llorris para um lado, bola para o outro. Aos 35 minutos, Mac Allister iniciou o contra-ataque em seu campo defensivo, tocou de primeira a Messi e correu para receber.
“TOCO Y ME VOY” — Messi deu dois toques de canhota e passou ao jovem atacante Julian Álvarez no meio de campo, que lançou longo e de primeira a um Mac Allister já em progressão pela direita. De primeira, ele cruzou à esquerda a Di Maria, que também de primeira fez 2 a 0. A quem já ouviu falar em “toco y me voy” (“toco e eu vou”), resumo da escola de futebol clássico e de toque de bola da Argentina, sem nunca saber direito o que é, favor rever o lance.
NUNCA ANTES NA FINAL — O impacto do domínio argentino no primeiro tempo foi tanto que, antes dele ser encerrado, Deschamps substituiu dois jogadores: Dembélé, ainda tonto do baile de Di Maria, e o centroavante Olivier Giroud, que não viu a cor da bola. A alteração tão precoce de dois jogadores também nunca havia acontecido numa final de Copa do Mundo.
FUTURO DE MBAPPÉ? — Vice-artilheiro da França no Qatar, Giroud saiu contrariado, jogando garrafa d’água com força no chão e chutando o banco de reservas. Mas serviu para observar Mbappé jogando não como extrema pela esquerda, ou pela direita, como em 2018. Mas de centroavante, posição à qual deverá migrar, como fez anos atrás e com grande sucesso o português Cristiano Ronaldo.
PRESENTE DE MBAPPÉ — Com as substituições no segundo tempo de Di Maria e De Paul, que fazia bom trabalho de marcação sobre Mbappé, foi a vez do futebol de exceção deste aparecer. Aos 33 minutos, numa infiltração pela esquerda, o atacante Kolo Muani driblou o zagueiro Nicolás Otamendi, ganhou a área a sofreu o pênalti. Mbappé cobrou no canto direito do goleiro Emiliano Martínez, que chegou a tocar na bola, antes dela entrar.
PRIMEIRO EMPATE — O camisa 10 da França buscou rapidamente a bola e correu com ela para reiniciar o jogo em busca do empate. Dois minutos depois, ele viria. Na entrada esquerda da área, ele tocou de cabeça para o atacante Marcus Thuram devolver de primeira com a destra, em bela triangulação. Que foi arrematada por Mbappé também de direita e de primeira, no voleio antes de a bola tocar ao chão.
PRORROGAÇÃO — Apesar do empate arrancado pela França na segunda etapa do tempo normal, a Argentina voltou melhor na prorrogação. E só não marcou no primeiro tempo de 15 minutos porque o atacante Lautaro Martínez saiu do banco para perder duas oportunidades claras de gol, na reedição do que o levou à reserva no decorrer da Copa.
MESSI 3 x 2 MBAPPÉ — No segundo tempo da prorrogação, logo aos dois minutos, o lançamento pelo alto do lateral direito Gonzalo Montiel encontrou Lautaro na entrada direita da área. Ele escorou a Messi, que tocou à esquerda para Enzo Fernández devolver em triangulação à direita com Lautaro. Que concluiu a outra defesa de Lloris, mas dessa vez à sobra atenta de Messi. A provar que sua perna direita não é cega como era a de Diego Maradona, ele concluiu para o lateral Jules Koundé tentar tirar já dentro do gol.
SEGUNDO EMPATE — Oito minutos depois, numa sobra de bola dentro da área da Argentina, Mbappé chutou forte da esquerda e a bola bateu no braço direito de Montiel. Pênalti marcado, o craque francês não mudou o canto da primeira cobrança, mas dessa vez deslocou Martínez ao lado oposto. Que, já nos descontos da prorrogação, fez defesa salvadora com o pé esquerdo, como goleiro de handebol, num chute forte de Kolo Muani sozinho na área.
MARTÍNEZ BRILHA — A estrela de Martínez brilharia novamente na disputa de pênaltis. Após os craques Mbappé e Messi abrirem a série e converterem, o goleiro argentino catou no seu canto direito a cobrança do atacante Kingsley Koman. Foi o mesmo lado em que, para tentar colocar fora do alcance do arqueiro, o bom volante Aurélien Tchouaméni acabou batendo para fora, após o atacante Paulo Dybala converter o seu, como depois o volante Leandro Paredes. Kolo Muani ainda anotou para os Le Bleus, mas tampa do caixão seria fechada na cobrança de Montiel.
RECORDES DE MBAPPÉ — Em 2018, na Rússia, nos 4 a 2 sobre a Croácia, Mbappé tinha 19 anos quando foi o jogador mais novo a marcar um gol em final de Mundial. Desde que Pelé, aos 17, marcou dois na decisão da Copa de 1958, nos 5 a 2 do Brasil contra a Suécia e dentro da Suécia. Já no Qatar de 2022, com 23 anos, Mbappé e seu hat-trick (quando um jogador faz três gols em um mesmo jogo) igualaram o feito do ex-centroavante inglês George Hurst na Copa de 1966. Dentro de casa e único Mundial da Inglaterra, marcou três nos 4 a 2 na final contra a Alemanha. Que também demandou prorrogação.
TÃO JOVEM, SÓ PELÉ — Com a projeção de mais três Mundiais à frente, na próxima, em 2026, quando tiver 27 anos, Mbappé deve estar no seu auge físico. Pelo que mostrou nas duas últimas, sendo campeão em uma e vice na outra, ele impressiona pelos recordes já alcançados. Como por sua velocidade, explosão, visão de gol e, sobretudo, capacidade de decisão. Que, à exceção de Pelé, não se viu em alguém tão jovem nestes 92 anos de Copa do Mundo.
PARIS E BUENOS AIRES — Ainda assim, Mbappé voou do Qatar a Paris após engolir o dito em maio deste ano. Ao renovar contrato com o Paris Saint-Germain (PSG), onde é companheiro de clube de Messi e Neymar, bravateou: “Na América do Sul o futebol não está tão avançado quanto na Europa. Por isso nas últimas Copas, se você olhar, são sempre os europeus que vencem”. Na dúvida, melhor conferir a festa albiceleste ontem em Buenos Aires para receber os campões do mundo. Quando a Copa do Mundo de futebol voltou ao continente que a pariu.
E O BRASIL NO QATAR? — A arrogância de Mbappé, ao menos, tem alguma justificativa no passado recente e no presente. Aos brasileiros, essa recorrente arrogância do “comigo ninguém pode no futebol”, como cometa que passa de quatro em quatro anos, é delírio. No Qatar, a Seleção Brasileira não conseguiu fazer um jogo inteiro bom. Exceções parciais ao segundo tempo dos 2 a 0 contra a Sérvia e ao primeiro tempo dos 4 a 1 sobre a Coréia do Sul.
ESCRITA VAI A 24 ANOS? — Também na disputa de pênaltis, o Brasil parou na Croácia nas quartas de final. Como é eliminado há 20 anos em todo o primeiro jogo eliminatório contra um europeu em Copa do Mundo. Desde a última que conquistou de 2 a 0 sobre a Alemanha, na final de 2002. Até 2026, com as 48 seleções anunciadas pela Fifa com sede no Canadá, EUA e México, serão 24 anos do único pentacampeão mundial fora da elite do futebol.
DE DIEGO A LIONEL — A Argentina estava fora da elite ainda há mais tempo, há 36 anos, desde que a “mão de Deus” tocou a perna canhota de Maradona em 1986, na conquista Copa do Mundo do México, na final por 3 a 2 sobre a Alemanha. Muito embora Dom Diego ainda tenha levado sua seleção à final de 1990, na Itália, vencida pela mesma Alemanha na revanche de 1 a 0.
A ÚNICA MANEIRA — A Argentina volta ao topo do mundo agora, conduzida por outro canhoto tocado por Deus. Com o Barcelona, Messi conquistou 10 Campeonatos Espanhóis, quatro Champions da Europa e três Mundiais de Clubes. E, no PSG a partir de 2021, um Campeonato Francês. Mas, para finalmente resgatar a Copa do Mundo ao seu país, enfileirou na fase eliminatória e bateu em três europeus: a Holanda, a Croácia e a França de Mbappé.
O ESTILO E O GÊNIO — O Brasil abriu mão do tal “futebol arte” que o fez tricampeão em 1958, 1962 e 1970 com Pelé, desde a traumática eliminação de Zico, Falcão e Sócrates para a Itália na Copa de 1982, há 40 anos. Campeã em 1978 e 1986, para depois sofrer três décadas e meia, a Argentina voltou a vencer em 2022 sem nunca abrir mão do seu estilo no futebol, da expressão da sua cultura no “toco y me voy”. Venceu porque, mesmo acima de Romário e Bebeto em 1994, ou de Ronaldo e Rivaldo em 2002, tem um gênio chamado Lionel Messi.