A paternidade e a literatura — Seis meses sem Ícaro

 

Na Israel de 27 de janeiro de 2023, Ícaro e Aluysio Abreu Barbosa na Eremos Grotto, gruta diante do Mar da Galiléia onde Jesus meditava e orava (Foto: Ícaro Barbosa)

 

 

A paternidade e a literatura — Seis meses sem Ícaro

Com Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Sérgio Arruda

 

Hoje se completam seis meses sem a presença física de Ícaro. Tanto para Dora, sua mãe, quanto para mim, o dia 13 de cada mês passou a ter um significado que nenhum azar poderia supor. Cuja dor da perda, por mais lancinante, tem que ser vencida. Pelos 23 anos da breve aventura de existência de um homem que, muito jovem, fez sua opção de voar perto do sol. Buscou seu brilho mais intenso, o refletiu na retina úmida de vida e, por isso, a consumiu mais precocemente.

O poeta português Fernando Pessoa teve sua vida e obra marcada pelos heterônimos, fenômeno de explicação espírita para alguns, de psiquiatria certamente mais complexa e profunda do que o simples pseudônimo. Quatro, em Pessoa, eram poetas: o próprio Fernando; Alberto Caeiro, mestre dos demais; Ricardo Reis, marcado pelo apego ao classicismo latino; e seu oposto em estilo Álvaro de Campos, o mais modernista do quarteto.

Em seu poema “Se te queres matar, por que não te queres matar?”, Álvaro de Campos verseja:

 

“A mágoa dos outros?… Tens remorso adiantado

De que te chorem?

Descansa: pouco te chorarão…

O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,

Quando não são de coisas nossas,

Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,

Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros…

 

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda

Do mistério e da falta da tua vida falada…

Depois o horror do caixão visível e material,

E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.

Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,

Lamentando a pena de teres morrido,

E tu mera causa ocasional daquela carpidação,

Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas…

Muito mais morto aqui que calculas,

Mesmo que estejas muito mais vivo além…

 

(…)

 

Depois, lentamente esqueceste.

Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:

Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;

Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.

Duas vezes no ano pensam em ti.

Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,

E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

 

(…)

 

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,

Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

 

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.

És tudo para ti, porque para ti és o universo,

E o próprio universo e os outros

Satélites da tua subjetividade objetiva.

És importante para ti porque só tu és importante para ti.

E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?”

 

Pessoa não teve filhos. Nem ortonimamente, nem por nenhum de seus heterônimos. Por melhor poeta que fosse, por mais gigantesca que fosse sua sensibilidade, nunca pôde descobrir o que é deixar de ser o centro do próprio universo. Jamais trocou a condição de sol da sua vida pela de lua, satélite que passa a orbitar com gratidão e muito cuidado em torno de uma gravidade maior.

Penso em Ícaro todos os dias. Como, creio, sua mãe também. Seja nos sonhos em que ele cotidianamente nos visita, cabelos e barba longos, abertos na vereda do seu riso largo, fácil e sacana, seja no plano consciente da luz do dia. Em ambos, entra sem pedir licença. Como foi, em vida, a única pessoa que tinha prazer em receber à casa sem avisar.

Na contraposição à dureza órfã de filho de Álvaro de Campos, Ícaro sempre esteve e estará para mim como o Menino Jesus herético de Alberto Caeiro:

 

Menino Jesus e Fernando Pessoa

 

“A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as coisas.

Aponta-me todas as coisas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.

 

(…)

 

A Criança Nova que habita onde vivo

Dá-me uma mão a mim

E a outra a tudo que existe

E assim vamos os três pelo caminho que houver,

Saltando e cantando e rindo

E gozando o nosso segredo comum

Que é o de saber por toda a parte

Que não há mistério no mundo

E que tudo vale a pena.

 

A Criança Eterna acompanha-me sempre.

A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.

O meu ouvido atento alegremente a todos os sons

São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro

Na companhia de tudo

Que nunca pensamos um no outro,

Mas vivemos juntos e dois

Com um acordo íntimo

Como a mão direita e a esquerda.

 

(…)

 

Ele dorme dentro da minha alma

E às vezes acorda de noite

E brinca com os meus sonhos.

Vira uns de pernas para o ar,

Põe uns em cima dos outros

E bate as palmas sozinho

Sorrindo para o meu sono.

 

……

 

Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.

Pega-me tu ao colo

E leva-me para dentro da tua casa.

Despe o meu ser cansado e humano

E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias, caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.

E dá-me sonhos teus para eu brincar

Até que nasça qualquer dia

Que tu sabes qual é.”

 

Estava ao final de tarde de sábado (11) na posse do professor da Uenf e escritor Sérgio Arruda na Academia Campista de Letras (ACL). Enquanto ele falava, como costuma acontecer por vezes e sem motivo aparente, fui tomado de uma imensa saudade de Ícaro, da angústia da sua ausência. Chorei e despertei das lágrimas à secura real do cair do dia quente, onde ecoava a voz de Sérgio sobre o fundo baixo do ar condicionado em movimento. Sem combinar, ouvi e tive consolo no que pensei ter sido escrito ao meu filho e a mim:

 

 

“Sinto o respeito aos mortos como uma atividade solene e viva. Fixados no grande e difuso painel da memória, eles, os mortos, reclamam vida — não vida de carne e osso e sangue, mas de legados.

Quando buscaram alguma glória na literatura, buscavam algo primeiro para si. E fizeram isso na palavra grafada em papel, deixando em terra de vivos insumos para a eternidade.

Não é o escritor(a) que é imortal; é a literatura.

Este mundo de escritas mantém-se vivo por esse desejo de glórias — embora sempre ameaçadas pela poeira do tempo.

Signatária de grandes propósitos no mundo, a literatura ergueu palácios de sonhos e fantasias disfarçados de choupana e palafitas sobre a maré.

Eis porque devemos tanto à literatura. Ela é anterior à própria filosofia. Ela é anterior à ciência.

Ela é anterior à teoria literária, à crítica literária.

Parece até que anterior à própria palavra.”

 

Descobri nas palavras de Sérgio que a paternidade e a literatura, pela qual Ícaro tinha paixão, são também irmãs.

 

Abaixo, o encontro de Ícaro com a ave canora no alto da Fortaleza de Massada, Canudos do povo judeu, na Israel de 3 de fevereiro de 2023:

 

 

fb-share-icon0
Tweet 20
Pin Share20

Este post tem um comentário

  1. Ana Helena Nogueira Ribeiro Gomes

    Profundo.

Deixe um comentário