Da América do Sul ao mundo, não há coincidência no futebol

 

Em escanteio gerado após a zaga brasileira rebater a única conclusão a gol de Messi no Maracanã de terça, o zagueiro Otamendi ganha o lance pelo alto de André e Gabriel Guimarães para selar a terceira derrota do Brasil seguida nas Eliminatórias da América do Sul à Copa do Mundo, marca inédita em 69 anos

Histórico é um adjetivo muitas vezes usado de maneira fútil. Não raro por quem supõe, justamente por ignorar a História, que esta só passou a existir a partir do seu próprio nascimento ou sua suposta tomada de consciência de determinado assunto.

O futebol é um assunto que sempre envolverá paixão. Vale a ele, mais que talvez a qualquer outro esporte, a ressalva do romântico dos EUA Edgar Alan Poe à poesia: “Se não emocionar, não é nada”. Lógico que a poesia também tem que ser muito mais. Como o futebol.

O Brasil disputa as Eliminatórias da América do Sul à Copa do Mundo desde a de 1954, na Suíça. E, 69 anos depois, nunca tinha perdido nenhum jogo para a Colômbia, nenhum jogo dentro de casa e nunca duas vezes seguidas. Tudo isso caiu em 2023. Quando, depois da terça (21) contra a Argentina, no Maracanã, o “melhor futebol do mundo” contabilizou sua inédita terceira derrota seguida no quintal do próprio continente.

Essas marcas não foram feitas ou perdidas, nem seu vazio ainda mais alargado, por obra do acaso. Nada que se mantém por 69 anos, para virar fumaça em apenas 39 dias, é aleatório.

Antes de ampliar sua série de três derrotas nas Eliminatórias, o Brasil já tinha perdido por contusão seus dois principais jogadores: Neymar e Vini Jr. O primeiro, no 0 a 2 Uruguai de 17 de outubro; o segundo, no 1 a 2 Colômbia de 16 de novembro.

Neymar e Vini Jr. são atacantes. Mas não centroavantes. Escalado na posição por Fernando Diniz contra a Argentina, Gabriel Jesus pareceu atrasado ao admitir após a derrota: “Gol não é meu ponto forte”. Quem o viu escalado por Tite como centroavante titular em todos os cinco jogos do Brasil na Copa do Mundo de 2018, na Rússia, sem marcar um gol sequer, já sabia disso há cinco anos.

A verdade é que desde a aposentadoria de Ronaldo Fenômeno, em 2011, o Brasil não tem um centroavante que inspire confiança. Se tivesse contra a Argentina, teria vencido o jogo em que criou as duas chances mais claras de gol, mas não teve competência para definir.

Antes da Copa do Mundo de futebol ser criada, no Uruguai de 1930, o Brasil teve sua primeira grande conquista internacional no Sul-Americano de Futebol que sediou em 1919. Que teve como craque e artilheiro Arthur Friendereich, apelidado ali de “El Tigre”, com 4 gols.

Na Copa do Mundo de 1938, na França, o Brasil ficou em 3º lugar e deu o artilheiro da competição: Leônidas da Silva, o “Diamante Negro”, com 8 gols. Com a Copa do Mundo interrompida durante a II Guerra (1939/1945), coube ao centroavante Heleno de Freitas, o “Gilda”, ser o artilheiro do Sul-Americano de 1945, com 6 gols.

Com a volta da Copa do Mundo em 1950, o Brasil a sediou e perdeu a final para o Uruguai, de virada, por 1 a 2, dentro do Maracanã. Ainda assim, voltou a dar o artilheiro da competição: o centroavante Ademir Menezes, o “Queixada”, com 9 gols.

Nas Copas do Mundo de 1958 e 1962, no Bicampeonato do Brasil na Suécia e no Chile, o centroavante Vavá, o “Peito de Aço”, ficou atrás do francês Just Fontaine e de Pelé na artilharia da primeira. E empatado com Mané Garrincha e outros como goleador da segunda. Nas duas, Vavá marcou 9 gols.

No Tri do Brasil em 1970, no México, embora não fosse propriamente um centroavante e tenha ficado atrás do alemão Gerd Müller na artilharia, Jairzinho marcou 7 gols. O “Furacão” é, até hoje, o único jogador a ter marcado gols em todos os jogos de uma Copa do Mundo.

Na Copa do Mundo de 1978, na Argentina, o centroavante Roberto Dinamite ficou atrás do argentino Mario Kempes e de outros na artilharia, mas marcou 3 gols. Na Copa do Mundo de 1982, Zico nunca foi centroavante e ficou atrás do italiano Paolo Rossi e do alemão Karl-Heinz Rummenigge como artilheiro. Mas o “Galinho” fez o grito de gol cantar 4 vezes na garganta.

Nas Copas do Mundo de 1986 e 1990, respectivamente, no México e na Itália, o centroavante Careca ficou atrás do inglês Gary Lineker na primeira, e do italiano Totò Schillaci e de outros na segunda. Mas o brasileiro anotou nas duas 7 gols.

Na Copa de 1994, nos EUA, o centroavante Romário não foi o maior goleador, como disse que seria. Ficou atrás do búlgaro Hristo Stoichkov e do russo Oleg Salenko, e empatado com alguns outros na artilharia. Mas os 5 gols do “Baixinho” foram fundamentais para que ele cumprisse outras promessas mais importantes: ser campeão e craque daquele Mundial.

Do momento em que Friendereich marcou seu nome em 1919, ao que Ronaldo pendurou as chuteiras em 2011, foram 92 anos em que o Brasil produziu, sempre com renovação, alguns dos maiores artilheiros da história do futebol. Em dimensão continental e mundial. Não de campeonatos cariocas, paulistas ou brasileiros. Como este Brasileirão, que tem no veterano Luisito Suárez, do Internacional, seu melhor centroavante. E, hoje, é só banco do Uruguai.

Do plano coletivo ao individual, é autoexplicativa a decadência do futebol brasileiro. Que, ainda assim, jogou melhor que a Argentina na terça. O que pôde ser constatado até por quem estava lá para testemunhar Lionel Messi em seu último jogo oficial no Maracanã.

O único oito vezes Bola de Ouro como melhor jogador da Terra não reeditou a poesia da Copa do Mundo que conquistou em 2022, no Qatar, à Argentina. Mas, após sua única conclusão contra a meta brasileira ser desviada pela zaga, Messi gerou a cobrança de escanteio ao gol de cabeça do zagueiro Otamendi. Que fechou o placar e ampliou à História a escrita do Brasil.

Da América do Sul ao mundo, nunca houve coincidência no futebol.

 

Publicado hoje na Folha da Manhã.

 

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