“Todo mundo tem um plano, até levar um soco na cara”. Se fosse dito pelo filósofo ateniense Sócrates, soldado condecorado por bravura na Guerra do Peloponeso (431/404 a.C.) contra Esparta, seria mandamento ao pensamento ocidental. Mas é do nova-iorquino Michael Gerald Tyson, o Iron Mike, ex-campeão mundial profissional peso pesado do boxe inventado pelos antigos gregos. Na tal pós-modernidade, é um fenômeno do esporte e ícone da cultura pop.
Quem viveu com algum grau de consciência os anos 1980 e 1990, teve Mike Tyson entre suas maiores referências. Até hoje, é o campeão profissional peso pesado mais novo da história do boxe. Filho abandonado pelo pai, vinha de infância e adolescência pobres e de crimes em Bedford-Stuyvesant, bairro central do Brooklyn, numa Nova York violenta. Maior cidade do mundo que então vivia a adrenalina cotidiana de cidadezinha de western.
Da briga de rua, Tyson descobriu o boxe num reformatório, após 38 detenções. Onde foi descoberto, aos 13 anos, pelo lendário treinador Cus D’Amato. Que, até então, tinha revelado o campeão peso pesado de boxe mais jovem da história: Floyd Patterson, em 1956, aos 21 anos e 10 meses. D’Amato morreu um ano antes de Tyson abreviar isso. E ser o campeão mais jovem da categoria máxima do boxe, em 1986, com 20 anos e 4 meses de idade.
Do auge de Tyson, com uma fúria nunca antes vista no boxe, como da sua queda igualmente precoce, muito já foi escrito. Sua condenação por estupro não deve ser relativizada. Como o fato de que, entre prisões e solturas, ele fugiu do confronto contra os grandes do seu tempo: do então já veterano George Foreman, dono do direto de direita mais devastador da história, aos também pegadores Riddick Bowie, Ray Mercer e Tommy Morrison.
Quando se pôs à prova contra iguais, Tyson perdeu as três. Duas contra Evander Holyfield, em 1996 e 1997. Nesta, chocou o mundo, ao morder duas vezes e arrancar um pedaço da orelha do oponente. Como na maior surra que tomou, aplicada pelo britânico Lennox Lewis em 2002. Que cozinhou Tyson como galo: na pressão, a fogo brando. Com técnica, envergadura e paciência, amaciou a carne dura, até o nocaute inapelável no 8º round.
Tudo isso é preâmbulo, longo e talvez curto ao necessário. À luta de oito assaltos entre Tyson, aos 58 anos, contra o youtuber e emergente pugilista profissional Jake Paul, de 27, 31 mais novo. Foi na madrugada brasileira do último sábado (16), transmitida ao vivo pela Netflix. Em rounds mais curtos de 2 minutos — no boxe profissional e amador, cada um dura 3 —, Tyson dominou os dois primeiros. E foi dominado pelo inexorável do tempo nos seis seguintes.
São 58 anos. Que, sobretudo em esporte, cobram preço alto a qualquer um. Em explosão, velocidade, reflexos, coordenação motora e condição cardiorrespiratória. Somado à longa ausência dos ringues, que cassa o ritmo e a noção de distância. Ainda assim, Tyson teve seus momentos. De agressividade nos primeiros rounds. Mas, sobretudo, na ainda impressionante capacidade de defesa, em fintas rápidas e laterais de cabeça e tronco.
Jake Paul, provavelmente, nunca será campeão mundial. Talvez, nem chegue aos top 10 entre os profissionais. Mas, goste-se ou não dele entre os lovers e haters das redes sociais das quais é egresso, tem provado ser um pugilista esforçado de nível razoável. No boxe, já tinha imposto knock down, antes de vencer por pontos o grande ex-campeão de MMA Anderson Silva. Por ter começado já adulto no esporte, o garoto branco e bobo de Ohio merece respeito.
A quem viveu o final do séc. 20 e início do 21, o mais contundente da luta de sábado veio antes do gongo inicial. Quando um Lennox Lewis sempre articulado, como era desde os ringues, e um Evander Holyfield meio sonado deles, foram ao vestiário de Tyson, desejar-lhe sorte. Não ao indivíduo, mas à grande geração de todos. “Let’s go, champ”, convocou Lewis, o melhor deles, com a antiga e exuberante juba de leão rastafári cassada pela calva da velhice.
Nesses aparentes conflitos geracionais, vale a contextualização embasada do grande crítico literário George Steiner. Morto em 2020, aos 90 anos, ele disse muito lúcido em 2016, numa entrevista ao jornal espanhol El País:
— Vou lhe dizer uma coisa: Shakespeare teria adorado a televisão. Ele escreveria para a televisão. O que realmente me entristece é que as pequenas livrarias, os teatros de bairro e as lojas de discos estejam fechando. Por outro lado, os museus estão cada vez mais cheios, as multidões lotam as grandes exposições, as salas de concerto estão cheias… Portanto, cuidado, porque esses processos são muito complexos e diversificados para se querer fazer julgamentos generalizantes. O senhor Muhammad Ali era também um fenômeno estético. Como um deus grego. Homero teria entendido perfeitamente Muhammad Ali.
Após a luta que o jovem Jake Paul venceu (só) por pontos a um Tyson quase sexagenário, este testemunhou:
— Essa é uma daquelas situações em que você perdeu, mas, ainda assim ganhou. Não me arrependo de entrar no ringue uma última vez. Quase morri em junho (quando teve uma hemorragia por úlcera). Fiz oito transfusões de sangue. Perdi metade do meu sangue e 11 kg no hospital. E tive que lutar para ficar saudável para lutar. Então, venci. Ter meus filhos me vendo ficar de igual para igual e terminar 8 rounds com um lutador talentoso e com metade da minha idade, na frente de um estádio lotado do Dallas Cowboys, é uma experiência que nenhum homem tem direito de pedir. Obrigado!
Sem nenhuma figura de linguagem, Homero também teria entendido perfeitamente Mike Tyson. Herói trágico que meu filho único, de nome grego, tinha por ídolo.
Texto soberbo.