Edmundo Siqueira — Julgamento entre garantistas, punitivistas e contradições

 

Arte postada há três dias no Instagram por Deltan Dallagnol, ex-procurador da República e ex-deputado federal, retomando a definição reservada do ministro do STF Luiz Fux pelo então juiz federal Sergio Moro, durante a operação Lava Jato, em conversas de Telegram reveladas pelo site de esquerda Intercept

 

 

Edmundo Siqueira, servidor federal, jornalista e blogueiro hospedado no Folha1

Um julgamento entre garantistas, punitivistas e contradições

Por Edmundo Siqueira

 

“In Fux We Trust”. A expressão em inglês foi alardeada a quatro ventos em 2019, após reportagem do The Intercept. Era uma senha de confiança: Sergio Moro disse a Deltan Dallagnol que podiam contar com o ministro Luiz Fux para segurar a Lava Jato e, se preciso, os seus excessos. Em tradução simples — “nós confiamos em Fux” — era dizer que havia um juiz no Supremo pronto para ser mais acusador que garantista.

Corta para 2025. No julgamento da chamada “trama golpista”, eis que Fux já não é o mesmo. O punitivista virou garantista. O ministro que servia de escudo à Lava Jato agora ergue o “in dubio pro reo” como dogma e, em mais de 12 horas de voto, inocentou a maioria dos acusados. Mais: livrou Jair Bolsonaro de todas as acusações, e para isso esticou o entendimento do crime de formação de quadrilha e classificou os ataques de 8 de janeiro como uma mera “turba desordenada”, sem agenda golpista. Acampamentos pedindo golpe militar? Para Fux, exercício de liberdade. Intervenção militar e AI-5 perdidos nas manifestações? Folclore de quartel.

Mudança de entendimento não é pecado. Direito não é dogma, é processo. Mas o problema não é mudar:  é adaptar seus entendimentos no ponto exato em que a história exige firmeza. Também não há nenhum impedimento nas divergências entre os membros de um colegiado, entre ministros de uma corte que deve mesmo ser plural e permitir opiniões contrárias. Porém, como o próprio Fux disse em seu voto, “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.

Fux brigou até com ele mesmo para sustentar suas teses. Começou afirmando a incompetência do STF para julgar — como se a corte, guardiã da Constituição, não devesse se pronunciar sobre um ataque direto a ela. Enquanto Fux dava um giro de 180º, a ministra Carmén Lúcia avançava. Seu voto foi mais que jurídico: foi uma advertência. Citando o escritor francês Victor Hugo, disse que o “o mal feito para o bem”, na visão de quem propunha golpe, “continua sendo mal”, e quando tem sucesso “se torna um exemplo e vai se repetir”.

Carmem Lúcia e Zanin votaram afastando a narrativa de “manifestação popular” e reconheceram a conspiração. Deixaram um recado claro: não era o povo, era o golpismo.

 

Fux também acertou?

 

Ao alegar incompetência do Supremo, Fux questionou o fato do julgamento estar acontecendo na primeira turma da Corte, e não no Plenário. Nesse ponto, o ministro parece ter acertado no alvo. Se o entendimento é de que um ataque direto à Constituição deve ser julgado pelo STF, cabe ao Plenário, ou seja, a todos os ministros, a análise do caso. Cabe ao colegiado decidir sobre um crime dessa natureza, pois trata-se não de um crime comum, mas um encadeamento de fatos que pretendia abolir o Estado Democrático de Direito.

O julgamento é necessário, pedagógico e histórico. Não apenas por julgar um ex-presidente que — a partir do entendimento da maioria da 1º turma do Supremo (4×1) — agiu para permanecer no poder através de um golpe, mas também por colocar no banco dos réus militares de alta patente pelos mesmos crimes, fato inédito no Brasil.

Mas revela a contradição de sempre: a mesma Justiça que por anos titubeou diante das ameaças agora se apresenta como muralha. É justo perguntar se apresentar como proteção de forma imparcial e desnudada de interesses políticos, alheia às vaidades trazidas pelos holofotes, ou comete excessos para agir em vingança e não em justiça. E se não há, nos votos longos e nos latinismos garantistas, um esforço de apagar o passado com a tinta fresca do presente.

Penalizar os militares em um país que conta em sua história com pelo menos nove golpes de Estado, com participação das Forças Armadas, e na história recente (1964) viveu mais de duas décadas de ditadura, parece ser necessário, para a história não se repetir, como alertou Cármen Lúcia.

Mas a decisão da Primeira Turma também expõe uma fragilidade política da Corte. O julgamento de um ex-presidente e de generais de quatro estrelas, por sua natureza, não deveria ser fatiado em turmas, mas exposto à luz completa do Plenário.

Ao deixar o destino da democracia nas mãos de cinco ministros, o Supremo passa a imagem de um poder que, ao mesmo tempo em que se agiganta no discurso, encolhe na prática. É como se a muralha erguida contra o golpismo tivesse sido construída apenas até a metade, ou pelo menos com pedras passíveis de ruína.

Discutir se a turba era “organizada” ou “desordenada” soa quase como um preciosismo, quando o que se atacava era a própria democracia. Ao dourar a pílula com filigranas jurídicas, o risco é o de que a toga se torne um biombo, escondendo a gravidade dos fatos atrás da retórica.

É preciso cuidado com excessos punitivistas e garantistas. Porque, afinal, uma coisa é uma coisa. Outra coisa é outra coisa.

 

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