

Bancada cristã: O que realmente importa aos cristãos no Brasil?
Por Nelson Lellis
No dia 22, a Câmara dos Deputados aprovou regime de urgência ao Projeto de Resolução 71/25 com o objetivo de criar a Bancada Cristã. Trata-se de formalizar a união das já existentes Frentes Parlamentares Evangélica (FPE) e Católica. Tais Frentes funcionam como associações informais, de caráter suprapartidário, sem prerrogativas regimentais de liderança. No entanto, conseguem se articular como grupos políticos para pressão diante de determinados temas.
Essa junção permite que o grupo, com todas as garantias regimentais, tenha mais visibilidade e força para votação diante de pautas que lhe são comuns. A Bancada Cristã tem, nesse caso, o interesse em se tornar uma entidade com reconhecimento para exercer as prerrogativas no âmbito do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.
Sendo aprovada, poderá impactar diretamente na articulação política a partir de alguns fatores. Menciono ao menos três. O primeiro deles: voz e voto. A bancada terá direito a voz e voto nas reuniões do Colégio de Líderes. Isso representa a legitimidade para definir qual a pauta entrará para votação no Plenário e a ordem que será votada. Certamente, o poder de negociação na agenda legislativa sobre temas que lhe são caros terá outra configuração.
O segundo: tempo de fala. Durante o período destinado às Comunicações de Liderança, a bancada terá direito de usar a palavra por 5 minutos por semana. Isso garantirá maior visibilidade institucional, além de abrangência — através de edições/cortes — nas mídias sociais que, no output para a sociedade, fortaleceria os argumentos da bolha.
Por fim, votação. Os votos são realizados de forma individual — e isso não será alterado. A formalização da bancada aumentaria a articulação de projetos de seu interesse para, consequentemente, influenciar o resultado das votações com pressão política.
Atores políticos desfavoráveis ao projeto têm se pronunciado nas redes apresentando aspectos como o princípio da laicidade (CF, 1988, art. 19, I): a Câmara estaria privilegiando uma religião sobre outras. Além de discriminação de minorias religiosas (desequilíbrio na representação) e o conflito com o Regimento Interno que, ainda que permita a criação de blocos parlamentares e comissões (diferentemente de comissões permanentes, como educação e saúde), a formalização de bancadas temáticas seriam ponto de tensão institucional.
Por outro lado, os grupos favoráveis ao projeto entendem que haverá uma maior representatividade, uma vez que 83,6% da população brasileira, segundo o Censo 2022, se declarou cristã. Os proponentes acreditam que a bancada daria voz formal a essa parcela, sobretudo no que diz respeito aos temas morais e de costumes — o que fortaleceria a representação dos valores. Teoricamente, há razão nesse ponto, no entanto, pesquisas realizadas no cenário da 55ª Legislatura apontaram que os representantes cristãos na Câmara dos Deputados não votam com os interesses da maioria cristã no plano político-econômico.
Os últimos anos demonstram complexidade quanto à questão representação. Em pesquisas realizadas pelo Datafolha[1], foram colhidas opiniões que, durante minha tese de doutorado, separei em dois blocos.
O primeiro foi sobre temas morais e de comportamento, como acreditar em Deus para tornar as pessoas melhores, proibição do uso de drogas, pena de morte para crimes graves, legalização do porte de armas, homossexualidade (que deve ser desencorajada). O segundo bloco, opinião sobre plano político e econômico, cujos assuntos passavam por: pena de morte, pobreza, maioridade penal, posse de armas, questões econômicas, benefícios de programas governamentais, dentre outros[2].
Seguindo diretamente do plano da moral comportamental[3] para o plano político-econômico, a pesquisa registrou a opinião sobre as questões econômicas e governamentais de três classes: Congresso Nacional; FPE (pentecostais e não pentecostais) e Congressistas pentecostais. O segundo grupo se refere às opiniões do eleitorado: Evangélicos não pentecostais; Evangélicos pentecostais e Sem religião/ateus.
Ainda que a FPE não seja homogênea, o próprio nome já sugere uma representação maior entre evangélicos. Ora, a progressiva candidatura e eleição de políticos evangélicos demonstrou esse “sucesso” de representação. Todavia, as opiniões da maioria dos parlamentares desta frente se distanciaram da opinião dos eleitores evangélicos no que se refere aos temas político-econômicos[4].
Em vista do Art. 2º do Estatuto da FPE (nota 3), parece-nos que a combinação do exercício do processo legislativo com “os propósitos de Deus, e conforme a Sua Palavra”, por fim, sugere uma interpretação, em um quadro geral, de que a FPE se inclina mais ao liberalismo econômico do que a favor da defesa dos direitos trabalhistas e afins, diferentemente da posição mais comum entre os eleitores evangélicos.
Isso está larga e teoricamente comprovado. Sociólogos franceses, Luc Boltanski e Ève Chiapello já destacavam na obra “O Novo Espírito do Capitalismo” (2009) que é comum determinados religiosos (na política ou não) serem “progressistas” em assuntos ligados a determinados grupos minoritários, e “conservadores” quanto ao comportamento social.
Caberá, portanto, a partir desse novo movimento na Câmara, o silêncio (nada inocente) dos cristãos, deixando nas mãos do Congresso a decisão pelo Projeto a fim de fortalecer questões morais e de comportamento, ou a pressão nas ruas, para que questões como saúde, educação, leis trabalhistas, mais intervenção do Estado, sejam vistas como temas importantes a serem debatidos. A distância entre vontade popular e preferência de congressistas tem sido demonstrada na recente história do país.
[1] Realizadas em setembro de 2014, com uma amostra de 10.054 eleitores e, em outubro de 2015, com uma amostra de 340 parlamentares.
[2] Em 2015, catorze jornalistas de Brasília, São Paulo e Pernambuco, realizaram uma pesquisa com o objetivo de um levantamento sobre a religião dos deputados(as). Dos quinhentos e treze, quatrocentos e vinte e um responderam. Destes, apenas 68 (16%) afirmaram ser evangélicos (LELLIS, 2017, p. 98-99), sendo que a FPE era composta por 87 deputados(as) e 3 senadores. Isso confirma que a composição da FPE abriga membros de outras denominações religiosas, com a Igreja Católica.
[3] Quanto às questões morais e de comportamento, o próprio Estatuto da Frente Parlamentar Evangélica ajuda a orientar aos seus membros, em seu Art. 2º, inciso III: Procurar, de modo contínuo, a inovação da legislação necessária à promoção de políticas públicas, sociais e econômicas eficazes, influindo no processo legislativo a partir das comissões temáticas existentes nas Casas do Congresso Nacional, segundo seus objetivos, combinados com os propósitos de Deus, e conforme Sua Palavra (FRENTE PARLAMENTAR EVANGÉLICA, 2015, n. p., grifo meu). O Estatuto da FPE, apresentado em abril de 2019, manteve o artigo citado (cf. FPE, 2019). Contudo, o Estatuto de 2023 (atual) realizou uma série de modificações (disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/deputado/Frente_Parlamentar/54477-integra.pdf).
[4] Como contribuição para o debate, cf. Cunha (2018).
Publicado hoje na Folha da Manhã.