Há algum tempo, o Aristides Soffiati, sob pseudônimo de Edgar Vianna de Andrade, publicou na Folha sua seleção dos 30 melhores filmes de romance já produzidos. Baseado naquilo que Cazuza chamou de “inveja criativa” em relação a Renato Russo, fiquei com a idéia de também compor minha lista, extraída e lapidada no correr das últimas três semanas, não sem certo pesar por deixar de fora alguns títulos marcantes. Neste primeiro texto, estão listados apenas os cinco primeiros filmes, que serão seguidos dos demais 25, nas cinco próximas semanas. Essa multiplicação de críticas (com a divisão de cinco filmes em cada) advém da incapacidade confessa de ser tão sucinto quanto Soffiati para falar de tantos filmes que, falando do amor comungado entre sentimento e desejo, tanto falaram a mim…
1) “Houve uma vez um Verão” (“Summer of ‘42”, de Robert Mulligan, EUA, 1971, 103 min.) – Numa ilha, três adolescentes vivem o rito de passagem à idade adulta, durante o verão de 1942, com os EUA engajados na II Guerra. Um deles, Hermie (Gary Grimes) se apaixona platonicamente por uma mulher mais velha, Dorothy (a belíssima Jennifer O’Neill, então com 23 anos), e busca se aproximar dela, após o marido deixar a ilha para prestar serviço militar. Segue-se então um jogo de sedução entre o garoto de 15 e a “velha” de vinte e poucos, consumado numa cumplicidade sem par entre melancolia e êxtase, com uma notícia chegada do continente. Linda como Jennifer O’Neill é a trilha sonora do craque francês Michel Legrand, vencedora do Oscar de 1972, sobretudo a música tema, com sua melodia romântica e nostálgica, conhecida de ouvido mesmo por quem não viu o filme. Destaque também à fotografia em tons pastéis de Robert Sturtees, bem como ao sensível e por vezes hilário roteiro autobiográfico de Herman Raucher, o “Hermie” retratado nessa jóia de rara beleza do cinema. É da boca dele que ouvimos, na narração em off retrospectiva, sobre quando avistou pela primeira vez o seu primeiro amor: “Nada desde aquele dia em que a vi, e ninguém que conheci depois, foi tão amedrontador e perturbador. Porque nenhuma pessoa que conheci a vida inteira fez tanto para me fazer sentir mais seguro, mais inseguro, mais importante e menos significativo”. Nem para Hermie e, talvez, nem para nós…
2) “A Filha de Ryan” (“Ryan’s Daughter”, de David Lean, Grã-Bretanha, 1970, 195 min.) – Outro affair à beira-mar, com outra mulher casada, durante outra Grande Guerra Mundial. Em 1916, num vilarejo litorâneo da Irlanda, Rosy (Sarah Miles), filha de Thomas Ryan (Leo McKern), dono do pub local, se casa com seu ex-professor, Charles Shaughnessy (Robert Mitchun), excelente marido, amante nem tanto. Quem aparece para suprir as carências da jovem esposa é o major britânico Randolph Doryan (Christopher Jones), galante apesar da deficiência na perna e das perturbações na mente como consequências dos campos de batalha da I Guerra. Sua missão é vigiar de perto as ligações dos irlandeses (dominados pela Inglaterra) com os alemães (inimigos dos ingleses). Um desembarque de armas pelo mar (em sequência majestosa) é denunciado por Ryan, mas a culpa recai sobre sua filha, que tivera o romance antes revelado pelo deficiente mental Michael (John Mills, vencedor do Oscar de 1971, como ator coadjuvante). A parceria entre dois gênios da sétima arte, David Lean na direção e Freddy Young na fotografia (responsáveis por outra obra-prima, “Lawrence da Arábia”, de 1962), rendeu ao último o outro Oscar conquistado por “A Filha de Ryan”. Na verdadeira aula de fazer cinema em que se consiste esse filme, destaque à cena da consumação do amor de Rosy com o major, deitado sobre ela na relva irlandesa, com o corte sutilmente erótico (e sensibilíssimo) à brisa que esparge no útero do espaço as sementes brancas das flores.
3) “O Leitor” (“The Reader”, de Stephen Daldry, EUA e Alemanha, 2008, 124 min.) Outra paixão entre um adolescente e uma mulher madura, tendo a II Guerra Mundial (ou suas mais trágicas lembranças) como pano de fundo. O filme começa em 1995, com o advogado alemão Michael Berg (Ralph Fiennes) remetido em flash-back até um bonde que tomara, aos 15 anos (na pele de David Kross), num dia chuvoso de 1958. O rapaz passa mal, salta do veículo e busca abrigo na entrada de um prédio, no qual mora a trocadora do bonde, Hanna Schmitz (Kate Winslet), que o ajuda. Daquele contato, se inicia uma relação amorosa, consumada na carne com a leitura (dele) e a audição (dela) da “Odisséia”, de Homero. Os encontros se sucedem no apartamento de Hanna, na cruza entre o sexo e a leitura das obras que ele estudava na escola e ela ouvia avidamente em sua cama. Um dia, sem explicações, Hanna parte e a vida do garoto (“kid”, como ela sempre o chamou) segue até a faculdade de Direito, onde ele e um grupo de colegas, já em 1966, vão acompanhar o julgamento de ex-guardas femininas do regime nazista, pela morte de prisioneiras judias. Surpreso por reencontrar Hanna entre as rés, o espanto se torna compreensão, quando ele finalmente percebe que a avidez da ouvinte derivava do seu analfabetismo, condição que poderia amenizar a condenação, mas é omitida por ambos. Sentenciada à prisão perpétua, Hanna passa a receber na cadeia fitas gravadas e enviadas por Michael, com as leituras de várias obras. Comparando as palavras ouvidas nas gravações com as sílabas pacientemente debulhadas nos livros da biblioteca da prisão, Hanna aprende a ler. E, humanizada por essa nova condição, na busca do seu amor, ela alcança a dimensão do seu crime. Oscar de melhor atriz para Kate Winslet, que dobrou a tribo judaica de Hollywood com sua permeável composição da nazista arrependida, além da terceira indicação de melhor diretor para o teatrólogo inglês Stephen Daldry, na terceira obra de sua filmografia, após os igualmente sensíveis “Billy Elliot” (de 2000) e “As Horas” (de 2002).
4) “Lavoura Arcaica” (Idem, de Luiz Fernando Carvalho, Brasil, 2001, 161 min.) – Primeiro filme desta lista que também consta na de Soffiati, só está aqui pela definição dele, já que a classificação geral dessa exuberante leitura cinematográfica do livro homônimo de Raduan Nassar, sempre esteve mais para um drama baseado na inversão da parábola do filho pródigo. O elemento escolhido pelo colega crítico para considerar o filme como de “romance”, é a paixão incestuosa entre os irmãos André (Selton Mello) e Ana (Simone Spoladore). Todavia, também a severidade do pai (Raul Cortez) e o amor sufocante da mãe (Juliana Carneiro da Cunha) foram causas para a fuga de André, da casa rural de sua família de imigrantes libaneses, para uma pensão. A pedido da mãe, o filho mais velho, Pedro (Leonardo Medeiros), vai em busca do irmão. Após uma conversa regada a álcool e tensão, com memórias evocadas em fluxos de consciência, alguns ternos, muitos violentos, André retorna à casa, mas só para que a incompatibilidade entre as tradições cristãs do pai e o profetismo de si mesmo, do filho, exploda na consumação do incesto deste com a irmã. Após passarem nove semanas na fazenda do interior de Minas que serviu de locação, onde aprenderam a trabalhar a terra, ordenhar, fazer pão, bordar e dançar como uma família libanesa, todos os atores atingem interpretações à flor da pele. Delas, não fica atrás a fotografia do mestre Walter Carvalho, equilibrada no claro-escuro (o chiaroscuro da inovação renascentista de Da Vinci) ofertado pela luz do dia e das lamparinas; tampouco a trilha sonora do compositor Marco Antônio Guimarães, que utilizou temas da música árabe, não sem uma citação d’A Paixão Segundo São Mateus, de Bach. Único longa no cinema do diretor de novelas e minisséries Luiz Fernando Carvalho, está, na opinião deste crítico, entre os três melhores filmes brasileiros já feitos, independente de gêneros, ao lado de “Limite” (1930), de Mário Peixoto, e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), de Glauber Rocha.
5) “Casablanca” (Idem, de Michael Curtiz, EUA, 1942, 103 min.) – Outro filme passado durante a II Guerra, como “Houve uma vez um Verão”, e sobre um triângulo amoroso, como “A Filha de Ryan”, tem sobre estes dois, ou qualquer outro filme de “romance” já produzido, o papel não de criar, mas de fundamentar o gênero. O estadunidense Rick Blane (Humphey Bogart) é o dono de um bar em Casablanca, no Marrocos, rota de fuga para Portugal e de lá para a América, buscada por muitos perseguidos pelos nazistas, então senhores da Europa. Naquela babel do Norte da África, governada pela França de Vichy, subordinada à Alemanha de Hitler, todos se reúnem no Rick’s Café Américain: franceses ressentidos pela dominação, alemães triunfantes, fugitivos de todas as nacionalidades, ladrões, policiais, soldados, jogadores, bêbados e prostitutas. Rick os observa indiferente do alto de seu escritório, descendo de vez em quando para rodar entre as mesas do bar e a roleta do cassino, enquanto alguns afogam suas mágoas e outros negociam seus interesses ao som do piano de Sam (Dooley Wilson). Nesse frágil equilíbrio, tudo corre relativamente bem até que entra em cena o líder da resistência Victor Laszlo (Paul Heinreid). Nada que afetasse o impassível e cínico dono do estabelecimento, não fosse o fato de Victor vir acompanhado da Sra. Laszlo, Ilsa (Ingrid Bergman), antigo amor de Rick, vivido intensamente até Paris ser invadida pelos alemães. O reencontro reacende a paixão, mas conta com outro complicador, além de Victor Laszlo: os dois salvo condutos de que este precisa, para fugir à perseguição do major nazista Heinrich Strasser (Conrad Veidt), ficaram em poder de Rick, após o contrabandista Guillermo Ugarte (Peter Lorre) ser morto em seu bar, pela polícia do capitão francês Louis Renault (Claude Rains, indicado ao Oscar de coadjuvante). Tudo passa, então, a girar em torno de quem ficará com ficará com os salvo condutos e o amor de Ilsa. A bem da verdade, nem a atriz Ingrid Bergman sabia, até pouco antes de filmar a cena final, dúvida que os roteiristas Julius J. Epstein, Phillip G. Epstein e Howard Koch (três judeus) impuseram dolosamente à composição da personagem. Mais até do que às interpretações antológicas de Bogart e Bergman (ambos indicados ao Oscar), do que ao figurino emblemático de Orry-Kelly (responsável pela definição dos anos 40 como ápice da elegância na moda do séc. 20), do que à brilhante fotografia em preto e branco de Arthur Enderson (outra indicação), ou do que à direção irretocável do húngaro Michael Curtiz (vencedor das estatuetas de melhor diretor e filme), cabe aos três roteiristas, também ganhadores do Oscar, a maior parcela pela perenidade desse filme de quase
70 anos. À parte frases que se tornaram lugar comum, como a que antecipa o The End (“Acho que isso é o início de uma bela amizade!”), a maioria dos diálogos continuariam intactos em inteligência e atualidade se fossem postos na boca de personagens do próximo filme de Quentin Tarantino: Major Strasser: “Qual a sua nacionalidade?”/ Rick: “Eu sou um bêbado.”// Yvonne (Madeleine Le Beau): “Onde você estava ontem à noite?”/ Rick: “Faz tanto tempo que eu não lembro.”/ Yvonne: “Eu vou te ver hoje à noite?”/ Rick: “Eu nunca faço planos com tanta antecedência.”// Capitão Renault: “O que, em nome de Deus, te trouxe a Casablanca?”/ Rick: “Minha saúde. Eu vim a Casablanca por causa das águas.”/ Renault: “Águas? Que águas? Nós estamos no deserto!”/ Rick: “Eu estava mal informado.”// Ugarte: “Você me despreza, não é?”/ Rick: “Se eu pensasse em você, provavelmente o desprezaria”. De fato, o roteiro é tão instigante que a ele é atribuída a fala mais famosa da história do cinema, mas que nunca foi dita no filme: “Play it again, Sam!” (“Toque de novo, Sam!”). Com a deixa correta ou não, o que importa fica nos versos finais da canção: “The word will always welcome lovers / As times goes by” (“O mundo sempre dará boas vindas aos amantes / Com o passar do tempo”).
Seleção das mehores.Parabens!
Nada é mais pertubador,digo arrebatador, que a primeira VERDADEIRA PAIXÃO,sim, mais que o VERDADEIRO AMOR, perdemos o chão,isto é muito bom,dolorido,mas muito bom.