Depois de “Houve uma vez um Verão”, “A Filha de Ryan”, “O leitor”, “Lavoura Arcaica” e “Casablanca” (aqui), chegou a vez dos próximos cinco filmes numa brincadeira descompromissada que acabou dando o maior trabalho: listar e analisar os 30 melhores filmes de “romance” já produzidos. A idéia, como dito anteriormente, se deu a partir da seleção análoga feita pelo Edgar Vianna de Andrade, pseudônimo de Aristides Soffiati. Na opinião de outro crítico, que ainda fica devendo 20 títulos após este post, seguem os próximos…
6) “Closer — Perto Demais” (“Closer”, de Mike Nichols, EUA, 2004, 104 min.) – Se os triângulos amorosos estão longe de ser uma novidade nos filmes “românticos”, essa obra recente do veterano diretor alemão, então aos 73 anos, se monta sobre um retângulo: Alice Ayres (Natalie Portman), Dan Woolf (Jude Law), Anna Cameron (Julia Roberts) e Larry Gray (Clive Owen). Não que a arquitetura seja uma novidade para Mike Nichols, que a usou para revolucionar o gênero, ainda nos anos 60, logo em seus dois primeiros longas: “Quem tem Medo de Virgina Woolf?” (1966) e “A Primeira Noite de um Homem” (1967). Quase quarenta anos depois, ao som de “The Blower’s Daughter” (a “É isso aí” da versão brasileira de Ana Carolina), apropriada e bela música tema do compositor e cantor irlandês Damien Rice, a primeira cena de “Closer” traz a stripper Alice e o jornalista aspirante a escritor Dan caminhando pelas ruas de Londres, até o encontro inusitado, ponto de partida da relação. Numa sessão de retratos para a promoção do seu novo livro, Dan conhece a fotógrafa Anna, com quem estabelece uma atração mútua, interrompida pela chegada de Alice, que percebe o clima. Por motivos insondáveis, mas de resultado cômico, Dan se faz passar por Anna, pela internet, onde marca um encontro entre ela e o médico Larry, compondo o outro casal. Numa exposição de fotos de Anna, ela e Dan acabam retomando o flerte interrompido, muito embora o evento também tenha servido para Larry conhecer Alice, que define causticamente os valores da pós-modernidade dos nossos dias, do qual o filme, ironicamente, é um retrato fiel. Entre traições e reconciliações, retomadas e abandonos, a grande surpresa fica para o final, quando a verdade sobre Alice, numa placa de jardim, confirma a revelação anterior da stripper Jane Jones, ambas reunidas na grande interpretação do filme, a cargo da israelense Natalie Portman (indicada ao Oscar de coadjuvante de 2005, assim como este ano, para atriz principal, por seu trabalho em “Cisne Negro”). Liberta de um elo desvelado fraco, ela pode caminhar por outras ruas, ao som da mesma música, cujos versos finais, apenas sussurrados por Rice, servem de mantra aos “líquidos” relacionamentos contemporâneos: “I can’t take my mind off you/ I can’t take my mind…/ My mind… my mind…/ Until I find somedody new” (Não consigo parar de pensar em você/ Não consigo parar de pensar…/ Meus pensamentos… meus pensamentos…/ Até encontrar alguém novo”).
7) “Não Amarás” – (“Krotki Film o Milosci”, de Krysztof Kieslowski, Polônia, 1988, 86 min.) – Ao lado de Roman Polanski (“O Pianista”, de 2004) e Andrezj Wajda (“Danton — O Processo da Revolução”, de 1983), Kieslowski foi um dos grandes diretores poloneses revelados pela Escola de Teatro e Cinema de Lodz. Mais conhecido pela trilogia das cores, em sua fase francesa (“A Liberdade é Azul”, de 1993, e “A Igualdade é Branca” e “A Fraternidade é Vermelha”, ambos de 1994), para muitos ele produziu suas melhores obras ainda na Polônia comunista dos anos 80, entre elas “Não Amarás”. Filmado inicialmente como sexto episódio da série “Dekalog” (“Decálogo”), feita para TV, com 10 filmes de 60 minutos ambientando cada mandamento bíblico na Polônia moderna, acabou alongado para o cinema, devido ao sucesso internacional em festivais. Um tímido e solitário rapaz de 19 anos, Tomek (Olaf Lubaszenko), mora no apartamento da mãe idosa de um amigo (Stefania Iwinska) e se apaixona obsessivamente por Magda (Grazyna Sapolowska), exuberante mulher mais velha, que desfila sua vida sexualmente ativa pela janela indiscreta do apartamento em frente. Ela é observada através de uma luneta, todas as noites, por Tomek, que não só usa seu emprego nos Correios para enviar avisos de correspondência falsos e forjar encontros (im)pessoais, como utiliza trotes para intervir na rotina sexual da amada, chegando a se empregar como leiteiro, apenas para exercitar seu voyerismo mais de perto. O final é trágico, mas na versão para o cinema é em parte atenuado pelo acréscimo de Magda chegando ao quarto de Tomek, quando comunga a visão de si mesma pela perspectiva de quem a amou mais que a própria vida. Neste momento, as melodias compostas por Zgnibnew Preisner como temas das duas personagens centrais se fundem numa só música. A inversão de perspectivas é ainda mais curiosa, levado em consideração que Kieslowski era um católico praticante, condição que impunha como subversão na leitura de dogmas religiosos sob a luz da sua arte, vivendo ainda numa ditadura comunista e oficialmente atéia, no mesmo mundo de um Papa polonês. Moral de Moisés (e Marx) à parte, o resultado, na opinião deste crítico, é o filme definitivo sobre paixões platônicas.
8 – “Um Bonde Chamado Desejo” (“A Streetcar Named Desire”, de Elia Kazan, EUA, 1951, 125 min.). No bonde elétrico cuja rota é chamada “Desejo”, Blanche DuBois (Vivien Leigh, Oscar de melhor atriz) salta com mala, cuia e toda sua afetação sulista no bairro pobre de New Orleans, onde a irmã caçula Stella (Kim Hunter, Oscar de coadjuvante) e seu rude marido Stanley Kowalski (Marlon Brando no auge) residem no andar térreo de um cortiço habitado pela classe operária. Sob a capa de seus modos refinados, herança do Sul agrário derrotado pelo Norte industrial na Guerra Civil dos EUA (1861/65), totalmente anacrônica naquele período pós II Guerra Mundial, Blanche oculta seu alcoolismo e suas perturbações mentais, frutos de graves frustrações amorosas, da mesma maneira que busca camuflar as rugas do seu rosto com véus e luminárias sobre as lâmpadas da casa. Kowalski, pelo contrário, não esconde nada, nem quando também abusa do álcool. Ele é exatamente o que aparenta, sem a mínima vergonha de sê-lo: um operário grosso, machista, desbocado e violento. Numa casa pequena e pobre, com quartos separados apenas por divisórias de pano, o conflito inevitável entre os cunhados vai superando a capacidade de mediação de Stella, que ainda por cima está grávida. Ciente de que seus dias estão contados naquela casa, Blanche reúne todo charme e beleza que ainda lhe restam, numa derradeira tentativa de casamento com Harold Mitch (Karl Malden, também vencedor do Oscar de coadjuvante), amigo solteiro e menos bronco de Kowalski. Este, porém, está decidido a não lhe dar nenhuma chance. Após descobrir que a cunhada fora expulsa da escola em que lecionava, após seduzir um aluno de 17 anos, ele revela o fato ao amigo e destrói a última esperança de Blanche. Não satisfeito, depois que sua mulher é internada para ter seu filho, ele estupra a cunhada, quebrando o pouco que restava ainda intacto em sua alma, fraturada desde quando, ainda jovem e recém-casada, seu marido se matou após ser flagrado por ela, na cama, com outro homem. Roteiro adaptado de Oscar Saul (em trabalho indicado ao Oscar) da obra prima de Tenesse Williams, maior dramaturgo estadunidense, já havia sido dirigida nos palcos pelo mesmo Elia Kazan que a transpôs às telas (com indicações de melhor filme e diretor), na notável fotografia em preto e branco de Harry Stradling Jr. (também indicado). Da Broadway a Hollywood, quem acompanhou Kazan foi Brando, numa dobradinha que faria igual sucesso em outro clássico do cinema, “Sindicato dos Ladrões” (1954). Relevante notar, nos conflitos entre as personagens, o embate também entre duas escolas de representação: a de Vivien Leigh, com a mesma grandiloqüência com que estrelara, 12 anos antes, “E o Vento Levou” (de Victor Flemming), contraposta à naturalidade, ao jeitão “não estou nem aí”, egresso do “método” de Lee Strasberg, na Actor Studios, com que Marlon Brando dividiu as águas do mundo na arte de interpretar no cinema.
9 – “O Céu que nos Protege” (“The Sheltering Sky”, de Bernardo Bertolucci, Grã-Bretanha e Itália, 1990, 138 min.) – Casal burguês de Nova York, a escritora Kit (Debra Winger) e o compositor Port Moresby (John Malkovich), acompanhados do amigo playboy George Tunner (Campbell Scott), partem num navio rumo ao Norte da África. É 1948, três anos após o fim da II Guerra, da qual a região foi um dos palcos de batalha, saindo do conflito para iniciar seu processo de descolonização de uma Europa devastada. A diferença no caráter da viagem para o casal e o amigo fica estabelecida logo ao desembarque: Turner: “Somos os primeiros turistas desde a guerra.”/ Kit: “Somos viajantes, não turistas.”/ Turner: “Qual a diferença?”/ Port: “O turista pensa em voltar para casa assim que chega.”/ Kit: “E o viajante pode nem voltar”. Na verdade, o único retorno planejado pelos Moresby é à paixão que esfriou em ambos no ócio de Nova York. Ao perceber que a atração (correspondida) de Turner por Kit pode ser um empecilho ao seu objetivo, bem como à fuga do conformismo opulento que o amigo representa, Port o deixa para trás em sua jornada cada vez mais para dentro da África e fora do mundo moderno. Na busca do amor, da música e, mesmo, da humanidade (da qual a África é o berço) em seus estágios mais primitivos, Port encontra o tifo, num forte da Legião Estrangeira, em pleno deserto do Saara, onde a vida abandona seu corpo em contraponto à areia que entra por todas as frestas do aposento. Antes, confessa à esposa que amá-la foi toda a razão da sua vida, e que tudo que fez foi por ela. Atônita pela morte do marido, Kit simplesmente segue uma caravana que passa, tornando-se amante de um nômade bérbere. Ela mergulha naquele mundo árido, miserável, tribal e repleto de moscas, onde o dinheiro não tem serventia e a língua estranha só se torna íntima ao traduzir o desejo. Como Ofélia, que enlouquece de verdade, enquanto Hamlet apenas simula, é Kit quem completa a busca de Port. Embora os transgressores “O Último Tango em Paris” (1973) e “Os Sonhadores” (2003) também sejam filmes de Bernardo Bertolucci que poderiam integrar qualquer lista de melhores filmes de “romance”, a opção se dá por essa solar transposição às telas do livro homônimo e autobiográfico (adaptado pelo próprio diretor italiano e pelo roteirista queniano Mark Peploe) do escritor estadunidense Pawl Bowles. É dele a voz da narração em off e é o próprio que surge, já idoso, encarando Kit, ao final do filme. Além da direção e das atuações de Winger e Malkovich, o destaque fica por conta das envolventes melodias compostas na parceria entre o japonês Ryuichi Sakamoto e o estadunidense Richard Horowtiz, assim como para a belíssima fotografia em planos amplos do gênio italiano Vittorio Storaro, conhecido como “mago das luzes” e discípulo assumido do pintor renascentista Caravaggio. À luz do sol real, é fato: no deserto ou no amor, só o céu nos protege.
10 – “O Paciente Inglês” (“The English Patient”, de Anthony Minghella, EUA e Grã-Bretanha, 1996, 160 min.) Outra estória de amor nos desertos no Norte da África, não após a II Guerra, mas antes e durante. Abatido pela artilharia antiaérea alemã, num biplano sobre as dunas do Saara, um aviador (Ralph Fiennes, em papel indicado ao Oscar) tem quase todo o corpo queimado, sendo socorrido por nômades bérberes, que salvam sua vida e o entregam ao exército britânico. Alegando amnésia e com o rosto desfigurado pelo fogo, a única suposição para identificá-lo é que seja inglês, por falar a língua. Levado com o esforço de guerra aliado à Itália, ele passa aos cuidados da enfermeira canadense Hana (Juliete Binoche, Oscar de atriz codjuvante), que perde o noivo e a melhor amiga em (con)sequência da guerra, apegando-se de maneira obsessiva à pessoa mais próxima que lhe restou: seu paciente “inglês” e terminal. Ela se muda com ele para uma igreja abandonada na Toscana (região mais bela da Itália), passando a dividir o local com o sombrio David Caravaggio (Williem Dafoe) e o desarmador de minas indiano Kip (Navenn Andrews). A partir daí, se desenvolvem duas linhas narrativas entrecortadas: no presente, com o envolvimento entre Hana e Kip, e no passado, com as memórias do paciente gradativamente resgatadas pelas anotações e anexos com os quais transformara em diário pessoal a sua cópia de “História” (livro que narra as guerras entre gregos e persas, no séc. V a.C.), de Heródoto, único pertence pessoal que mantinha consigo. Ele não é inglês, mas húngaro, o conde László de Almásy, integrante de uma expedição arqueológica internacional no Saara, onde se apaixona pela inglesa Katharine Clifton (Kristin Scott Thomas, em outra indicação ao Oscar) casada com Geoffrey (Colin Firth, indicado este ano por seu trabalho em “O Discurso do Rei”), espião britânico interessado no levantamento geográfico da região. A Almásy e Katharine, o que interessava era a paixão comum por Heródoto, mais precisamente pela passagem de Candaules, rei da Lídia no séc. VII a.C., assassinado por Giges, que lhe rouba a coroa e a rainha. Embora o conde húngaro tenha roubado a mulher de Geoffrey, é este que parte para o crime capital, ao lançar seu avião sobre os amantes, se matando e ferindo gravemente a esposa. Almásy deixa-a numa caverna e parte a pé pelo deserto, em busca de ajuda. Encontra primeiro os britânicos, que o tomam por inimigo e o prendem, sepultando as chances de socorro a Katharine. Após conseguir escapar, ele entrega os preciosos mapas da região aos alemães, em troca do avião com o qual resgata o corpo da amada. Indicado a 12 estatuetas do Oscar, levando nove, incluindo de filme e diretor, é o melhor trabalho do cineasta inglês Anthony Minghella, dotado de grande talento imagético e falecido precocemente em 2008, aos 54 anos. Também roteirista, ele assinou a adaptação (em mais uma indicação) do romance homônimo do canadense Michael Ondaatje. Outro oscarizado foi o competente diretor de fotografia australiano John Seale, num trabalho que reflete o zênite do mestre inglês Freddie Young, em “Lawrence da Arábia” (1962). Da onipresença solar do Saara à luminosidade setentrional da Toscana, destaque à cena noturna em que Kip suspende Hana com cordas, para ela descobrir os afrescos da igreja na oscilante vertigem do rapel improvisado e da chama da vela em sua mão.