Quando todos os lados do mundo foram meus (e da torcida do Flamengo)

 

Em pé: Leandro, Raul, Andrade, Mozer, Marinho e Júnior. Agachados: Lico, Adílio, Nunes, Zico e Tita
Em pé: Leandro, Raul, Andrade, Mozer, Marinho e Júnior. Agachados: Lico, Adílio, Nunes, Zico e Tita

 

Parido em 1972, sou de uma geração que nasceu, cresceu e se tornou adulta conhecendo o Brasil campeão do mundo em futebol apenas por imagens antigas de TV ou de ouvir falar. Quem nasceu até 10 anos antes, pegou uma, duas ou até as três Copas do Mundo anteriormente conquistadas, em 1958, 62 e 70. Quem nasceu a partir de 10 anos depois, teve a chance de testemunhar o Tetra, em 1994, ou pelo menos o Penta, em 2002, ainda em sua infância ou adolescência. Sem a mesma sorte, já tinha 22 anos quando Dunga (capitão de 94) levantou a Copa para repetir o gesto de Belini (58), Mauro (62) e Carlos Alberto Torres (70). Quando Cafu (2002) também o fez, eu já era um trintão, distante da idade em que geralmente nos permitimos a formação dos mitos.

Difícil explicar para quem não viveu esse hiato de glória no esporte nacional, sobretudo se rubro-negro, o que significou aquela conquista do Mundial Interclubes pelo Flamengo de Zico, hoje a completar exatos 30 anos. Se Pelé foi o que existiu de comum nas três primeiras Copas arrebatadas pela Seleção, das quais eu sabia sem ter vivido, também não ignorava o fato de que até aquele 13 de dezembro de 1981, apenas Pelé tinha sido também capaz de conduzir um clube brasileiro ao título mundial, com seu mítico Santos de 1962 e 63.

Se a última conquista santista tinha se dado dentro do Maracanã, por 4 a 2, diante do Milan, seria coincidência que, 18 anos depois, outro craque (Zico) e outro time (Flamengo), tão criticados por uma suposta incapacidade de exibir seu melhor futebol além das fronteiras do Maracanã, tivessem que atravessar o mundo para fazer aquela final em Tóquio, no Japão? E qual adversário poderia ser mais temível do que aquele Liverpool, até hoje listado entre os 10 melhores times europeus de todos os tempos, vencedor de 11 campeonatos ingleses e quatro Ligas dos Campeões da Europa, entre os anos 70 e 80?

Amparados em tamanha hegemonia nos cenários inglês e europeu, os jogadores da terra dos Beatles riram da roda de oração que os brasileiros fizeram na boca do túnel, antes do início da partida. Se soubessem, naquele 13 de dezembro, o que os rubro-negros haviam passado no mês anterior, no qual devolveram uma histórica goleada de 6 a 0 sobre o Botafogo, venceram o Campeonato Estadual numa série de três partidas contra o Vasco, conquistaram a Libertadores em outra épica trilogia de jogos frente ao Cobreloa do Chile (aqui), e velaram e sepultaram o grande artífice daquele time do Flamengo, o treinador Cláudio Coutinho, morto num acidente de caça submarina nas ilhas Cagarras, os ingleses talvez tivessem pensado melhor antes de rirem…

De qualquer maneira, se ri melhor quem ri por último, Raul, Leandro, Marinho, Mozer e Júnior; Andrade, Adílio e Zico; Tita, Nunes e Lico puderam fazê-lo desde o meio do caminho, pois ainda no primeiro tempo, usando e abusando do toque de bola para colocar os inventores do futebol na roda de bobo, conquistaram o placar de 3 a 0 que manteriam sem sobressaltos até o apito final.   

Aos 12 minutos, no círculo central, Zico lançou Nunes na esquerda, por elevação, que deu apenas um toque na bola para tirar do goleiro Grobbelaar e abrir o placar. Aos 34, após falta em Tita na entrada da área, Zico cobrou com força, Grobbelaar rebateu com as mãos, Lico tentou pegar o rebote, marcado pelo zagueiro Thompson, e a bola acabou sobrando para Adílio ampliar.

A tampa do caixão inglês foi fechada aos 41, quando Zico, novamente do meio-de-campo, acionou Nunes mais uma vez. Para não dizer que o terceiro gol foi uma mera reprise do primeiro, no último Zico lançou a bola rasteira à penetração de Nunes pela direita. E este, por sua vez, demandou o “hercúleo” esforço de dois toques para dominar, bater cruzado e dar números finais à partida.

Mentiria se dissesse que não fiquei frustrado pelo fato daquela conquista mundial do clube não ter se refletido apenas seis meses depois, pela Seleção Brasileira, na qual jogariam os flamenguistas Zico, Leandro e Júnior, junto a tantos outros craques comandados pelo técnico Telê Santana, na Copa do Mundo de 1982, na qual cairia precocemente, após ser eliminada, por 3 a 2, pela Itália. Mas diante do fascínio que aquele selecionado nacional ainda exerce no imaginário coletivo do Brasil e do mundo, a frustração fica com quem é incapaz de reproduzir ou compreender a capacidade espartana de converter derrota em vitória, aos olhos dos homens do seu tempo e seus pósteros.

Afinal, abaixo deste texto em prosa, como diz o poema escrito sobre aqueles dois times maravilhosos, o Fla de 81 e o Brasil de 82, que tinham em Zico seu principal craque e ponto de intersecção: “arte é o que poderia ou deveria/ nunca o que é”.

Sei que um dia tive 9 anos. Foi quando virei a primeira noite da minha vida, só para ver pela TV meu time jogar do outro lado do mundo, indo dormir já depois do sol nascido, com a certeza de que, pelo menos naquele novo dia, todos os lados do mundo eram meus. 

 

 

 

 

vendo vídeo

 

hoje vi um vídeo

e vi zico jogar

vi júnior inventando malabarismos no espaço

e vi leandro, que sempre via tudo de cabeça em pé:

mozer garoto correndo em deslumbre

andrade sem sobrar ou faltar

— exata medida! —

vi a pelada principesca de adílio

o modernismo bretão de tita

um tapa na bola de lico

galope de nunes em incisão pela área

e vi zico jogar

 

não vi raul ou figueiredo

porque segurança não se nota

e não se notar é como não se ver

mas vi adversários excluídos do palco

quando vi zico jogar

vi truculência chilena beijando lona

num grito de gol de jorge curi

vi soberba de súditos da rainha

da terra dos fab-four

se curvar à fabula maior

nas terras do imperador

vendo zico jogar

 

vi destino larápio em grama espanhola

injustiçando arte brasileira

quando vi zico jogar

mas arte é o que poderia ou deveria

nunca o que é

arte que emprenha arquibancada de glória

que confere nação à torcida

tupiniquins rubro-negros, udineses devotos

olhos rasgados em luz nascente

vendo zico jogar

lembrei do tempo em que via zico jogar

sem saber que ia ter que acabar

 

atafona, 26/12/95

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Este post tem 2 comentários

  1. Cilênio Tavares

    Pois é, caro Aluysio, quem viu esse time jogar não tem mesmo como esquecer. Só recentemente que meu filho, Flamenguista como o pai, teve oportunidade de ver o time campeão brasileiro. Mas longe da genialidade que marcou aquela equipe inesquecível.
    Bela narrativa!
    Abçs!

  2. Tavares

    Antes se jogava com amor a camisa , e era um time que colocava medo no adversário , hoje são apenas jogadores comuns , que não tem história pra contar .

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