Sobre as águas do nosso tempo
Nada prova mais que o tempo realmente passa por nós do que quando, sem nenhum aviso prévio, ele já não passa mais para quem o dividiu conosco. Sobretudo, se esta comunhão se deu em momentos aprazíveis, de confraternização descompromissada, daquelas embutidas na memória e que, como só sabe quem caminhou à beira do seu próprio tempo, são tudo que conta quando nossa hora finalmente chega.
Sendo ele e eu filhos de dois grandes amigos, cujos tempos de vida excedemos, conhecia André Coutinho há muitos anos. Foi, contudo, através da fraternidade construída na juventude com um dos seus irmãos, Maurício, e já em idade madura com outro deles, Gel, que nossa convivência se avizinhou. No correr dos anos, meu filho, Ícaro, ainda se tornaria amigo de João Marcelo, filho de Marcelo, outro irmão de André, no entrecruzamento natural em que a amizade parecia destinada a ficar presa às malhas de uma mesma rede.
Introspectivo no primeiro contato, André talvez fosse o mais afável dos cinco filhos de Geraldo e Audrey, numa prole unida, liderada por Tina. Se era reservado de início, tratava-se de biombo tão facilmente removível quanto a franja que vivia a ajeitar com a mão, quando o topete invariavelmente lhe escorregava à fronte, enquanto se permitia aprofundar amistoso em qualquer conversa, com qualquer um.
Responsável pelo apelido de “Professor Pardal” dado pelos irmãos, outra característica pessoal de André era sua vocação às invenções, particularmente às náuticas, responsáveis por outra alcunha conferida em família: “Comodoro”. Numa balsa que ele mesmo projetou e construiu, há alguns anos, tive talvez o dia mais agradável dos que passei na usina Paraíso, propriedade da família. Saindo de um canal próximo, navegamos, bebemos, jogamos conversa fora, fizemos escambo de cachaça por tilápia, entre cascos de madeira e fibra de vidro, com os pescadores em suas canoas, fritando o peixe fresco na cozinha que André concebeu em sua criação sobre as águas, naquela tarde achada dentro da Lagoa do Jacaré.
Por sorte, a cachaça não foi toda mercadejada em pescado, pois no caminho de volta a balsa acabou agarrada, já com a noite caída, na vegetação do canal. Enquanto esperávamos um trator da usina chegar para rebocar a embarcação e romper à força do diesel o enlace das plantas, a anestesia do destilado de cana foi minha única defesa contra as esquadrilhas ruidosas de mosquitos investindo em ondas cegas da escuridão. Além de aliviar o tormento da caça alada por sangue, não deixava de reconfortar a ideia efêmera de vingança, formulada entre goles queimando a garganta, por deixar aqueles algozes também embriagados pelo que bebiam das minhas veias.
Depois dali, sempre que nos encontrávamos, lembrávamos entre risos e brincadeiras da aventura, combinando reeditá-la numa nova embarcação que o Comodoro tinha projetado e estava construindo a partir da experiência da primeira. Mas não tivemos tempo de levar a ideia a cabo. Ontem, em caminhos de asfalto mais duros que os das águas, André foi um dos tantos cujo tempo a BR 101 não deixou mais passar. Tinha ao lado sua esposa, Gisele, companhia de vida da qual quase nunca se separava.
Diante à tragédia de duas aventuras de existência precocemente abreviadas, pares até nos mesmos 48 anos, pouco ou nada resta a dizer. Solidarizo-me com os irmãos de André, com seus três filhos, Andrezinho, Karina e Mariana; mas sobretudo com sua mãe, Audrey. Afinal, pai curtido da orfandade de pai, como era também André, sei que nada, neste e em qualquer outro tempo humano, pode doer mais que a crueldade antinatural de se perder um filho.
Gel tem uma sentença da qual gosto muito e, volta e meia, com o crédito devido, repito: “Se você não é bom filho, não é bom em mais nada”. Pois André foi um bom filho que soube navegar com serenidade a confluência das águas como irmão, marido, amigo e pai. Infeliz do homem, no confronto inexorável com o fim do seu próprio tempo, que desejar mais.
Belo texto. Parabéns
Consigo enxergar Andre em suas palavras.
Grande Marinheiro.
Que descanse em Paz ao lado da sua Companheira de toda a vida.
Belas Palavras, parabens.
meus sentimentos.
Que DEUS conforte os corações dos filhos e parentes, diante dessa trágica passagem.
Com esse belo texto , vc conseguiu expressar exatamente o que era o nosso amigo André . Muito obrigado por fazer essa homenagem ao amigo de fé , do qual eu chamava de Dedé . Abraço.
não haveria, palavras mas, encantadoras, sinceras à uma pessoa querida por este grande amigo…DEUS, sempre estará te confortando na saudadesss…
Não conhecia o casal mas o seu texto me fez lembrar de um grande amigo que perdi nessa rodovia que ja tirou tantas vidas.
Parabéns e que Deus conforte essa familia.
Nossa Aluysio, nada mais especial do que retratar a emoção de uma estória de verdade.
Quando a fala vem do coração não tem erro. Texto primoroso!
Belíssima Homenagem ao André e a Gisele, e uma viagem no tempo de quem teve uma infância privilegiada ao lado dos Coutinhos.
Desejo sinceramente que Andre e Gisele descansem em paz com a certeza que seus filhos encontrarão forças para continuar, pois contam com o apoio e o amor desta linda família que Geraldo e Audrey construíram, ao lado dos tios, primos e dos inúmeros amigos que eles acumularam pela vida afora!
Beijos
Lindo texto, Aluisinho!! Me emocionei mto com suas palavras. Bj