O georgiano naturalizado russo Vladímir Maiakóvski (aqui) se matou com um tiro no peito em 1930, aos 37 anos, 42 antes que eu desse início aos 42 que tenho de vida. O pantaneiro Manoel de Barros voou passarinho aos 97, na última quinta, levando no papo muito da saliva desta nossa língua de Luís de Camões. Os poetas italvense Sthevo Damasceno e paranaense Marcelo Garcia, que estão vivos e, sempre espero, bem, não vejo há alguns anos, nestes vôos distintos que a existência nos determina, no mais das vezes alheios à vontade.
Meu pai, que durante anos ocupou este espaço de prosa em dias de mais sorte, dizia que jornal, sobretudo primeiro caderno, não é lugar de poesia. Pois peço licença a ele e a você, leitor, para abrir neste uma exceção, na homenagem que um poeta de província junto a dois pares podem fazer a dois outros tão universais, a ponto de se permitirem prazenteiras intersecções vicinais. Não por outro motivo, seguem abaixo:
A flauta-vértebra
(Prólogo de poema de Vladímir Maiakóvski, na tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)
A todas vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.
Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.
Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
Esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.
Moscou, 1915
O fotógrafo
(Poema de Manoel de Barros)
Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim num beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada mais na existência do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Vi uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim cheguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakóvski — seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.
Campo Grande, 2000
“Fotografei o perdão”
(Manoel de Barros)
Negativos
(Em parceria com Sthevo Damaceno)
Os olhos de esferas e vitrais;
De natureza morta, verde musgo
Com brilho de primaveras e cristais,
Da pincelada de Goya no escuro
(Com toda força de um muro)
Resiste a visão mecânica, futuro
Que devora o próprio filho,
Com a saliva de um louco,
Entre os dentes de Saturno.
Num gemido mudo,
O sol semeia o ventre dos vitrais:
Que mergulha nesse verde flóreo,
Parecendo corte de faca ao caule.
E como na pintura
O verde e o amarelo geram o azul
Como um céu de sertão,
Os caminhos de Ulisses,
Ou o perdão nos olhos de um mendigo
— Pincéis de uma só tintura.
Nesse momento, não lúcido,
Os olhos de esferas e vitrais esgarçam o azul
Até que as lágrimas brotem, como ondas,
Umedecendo a realidade que apavora
E quando o sol se esvai
A natureza morta renasce de um cais,
Mas fica o corte do caule, na pele e na alma;
o resto é imagem.
Campos, 01/12/06
Viúva de Maiakóvski
(Em parceria com Marcelo Garcia e Sthevo Damaceno)
Em certos dias,
a saudade rasga as paredes da casa
e o outono nos olhos espreita as portas abertas
— cato todas as paixões vitimadas
pela gravidade das folhas.
Em dias certos,
não consigo me manter só,
vendo você entre os cômodos
e as gavetas vazias
da intimidade que nos vestia.
Essas miragens entre espelhos
do alguém que já não temos
com um outro que já não somos
me lembram: não apreendo ainda
[as coisas por dentro
condenado à espuma das ondas,
ao afogamento de quem temeu mergulhar.
Desafivelo o cinto da nuvem de calças
e quando roço meu sexo no seu
abate-me a impotência do suicida triste.
Ser imagem
e estar sempre do lado de fora.
Cascavel/Campos, 21/12/06
Publicado hoje na Folha