Crítica de cinema — Um robô trapalhão

Cinematógrafo

 

Chappie

 

Mateusinho 3Chappie — Nos filmes produzidos ou coproduzidos nos Estados Unidos, os ETs vêm à Terra para pilhá-la, salvá-la ou transformá-la em campo de batalha sideral. Particularmente num, eles vêm fugidos da miséria e se instalam na África do Sul, residindo e favelas paupérrimas e sendo discriminados por brancos e negros. O filme é um libelo ao racismo, mostrando que ele é um fenômeno de que qualquer ser humano pode ser vítima, ao mesmo tempo que está muito arraigado nas sociedades. Foi com este assunto que o diretor sul-africano Neill Blomkamp. estreou no cinema. Seu filme “Distrito 9” tornou-se um clássico. Em seguida dirigiu “Elysium” (2013). Cooptado pelo cinema dos Estados Unidos, ele volta com “Chappie”, com roteiro do próprio Blomkamp e de Terri Tatchell. O filme é desenvolvimento do curta “Tetra Vaal ”, dirigido pelo diretor em 2004.

Ambientado em Joanesburgo, África do Sul, ele mostra o profundo contraste entre ricos e classe média, morando no miolo de uma cidade tipicamente ocidental, e os pobres, morando em favelas piores que as do Rio de Janeiro. A atividade dos favelados que chama a atenção no filme é a transferência de renda por meio de violência. São as gangues armadas, distintas das gangues de gravata que também transferem renda por meio da corrupção no Brasil.

Diante de tamanha violência, uma empresa (Tetra Vaal) é contratada pelo governo para cuidar do policiamento da cidade, substituindo os policiais humanos por androides. Resolve-se o problema? Evidente que não. Como não há nenhum programa de promoção social, a marginalidade continua, só que agora combatida por super-policiais que podem ser destruídos sem que os humanos sofram com a morte de pessoas. Basta reparar os robôs danificados ou simplesmente substituí-los por outros.

A empresa é dirigida por Michelle Bradley (Sigourney Weaver) e nela trabalham o jovem engenheiro Deon Wilson (Dev Patel), que deseja dotar os androides de consciência e sentimentos humanos, o militar aposentado Vincent Moore (Hugh Jackman), empenhado em desenvolver um super-robô que superará os que estão em operação. Deon consegue alcançar seu intento e cria um androide humanizado semelhante a Pinóquio, como observou Gustavo Oviedo. Ele, porém, é sequestrado por três facínoras, entre eles uma impiedosa mulher. O robô é criado pela trinca e toma a mulher e um homem como pais, reconhecendo que Deon é seu criador.

Depois de cometer vários crimes, o androide adquire plena autonomia e muda para o lado do bem. A ideia de criar um robô plenamente humano seria boa se já não tivesse sido pensada muitas e muitas vezes antes. O diretor declarou numa entrevista que desejou colocar em discussão a questão da consciência. Tudo bem, mas ele passa ao largo das neurociências nesta discussão. Provisoriamente (porque em ciência tudo é provisório), tem-se por assentado que a consciência é uma emergência imaterial do supercomplexo cérebro humano, formando ao longo de pelo menos sete milhões de anos, sem considerar a história anterior do cérebro animal. Em outras palavras, o cérebro humano é material, ocupa quase todo espaço da caixa craniana, pode ser tocado e cortado quando exposto. A consciência e os sentimentos humanos podem ser externados, mas não tocados. São, portanto, imateriais, mas intimamente ligados ao cérebro como emergências de seu funcionamento hipercomplexo.

A criação de uma consciência artificial e externa ao ser humano não é trabalho de engenheiros, mas de neurocientistas, que não têm esperança de conseguir um dia o êxito do engenheiro Deon. As máquinas naturais não podem ser igualadas por máquinas artificiais. Por isso, o filme soa superficial e imaturo. Também não convincente com uma mulher cruel transformando-se numa doce mãe de um robô. Para falar a verdade, até mesmo meio caricato ao tornar uma mulher endurecida pela sobrevivência em meio violento numa terna e carinhosa mãe. Meio maniqueísta em traçar em linhas claras a distinção entre um engenheiro do bem lutando contra um militar do mal. Em simplificar a consciência humana num programa que pode ser armazenado num pendrive e transferido para robôs ou vice-versa. Mas o contato com más companhias pode influenciar uma pessoa. Parece que ficou meio enlatado ao ser cooptado pelos Estados Unidos. Enfim, “Chappie” é um filme mal resolvido.

 

Mateusinho viu

 

Publicado hoje na Folha Dois

 

Confira o trailer do filme:

 

 

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