Artigo do domingo — Barreiras invisíveis na cidade

 

Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir; pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir”

 

(Da música “Deus lhe pague”, de Chico Buarque)

 

 

Mucama

 

 

Lara de Almeida cruz
Lara de Almeida Cruz, estudante de psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF)

 Por Lara de Almeida Cruz

 

Ela não tem nome, nem idade. Anda pelo bairro, empurrando um carrinho de bebê, como um pedaço de grafite que vai riscando a superfície branca. Ela não tem nome, nem idade, mas tem cor. O uniforme branco contrasta com sua pele quase como uma denúncia: ela é preta.

Ela sai de casa quando o sol dá seus primeiros sinais tímidos no céu. Caminha até o ponto em passos apressados, como se o asfalto atrás de seus pés fosse se desfazendo a cada passada. Já no ônibus, ao longo do caminho, ela sente seu corpo parar de dar pequenos saltos no banco em cada buraco da rua e, de repente, parece flutuar no asfalto liso como cetim. De dentro do veículo, ela olha as imagens passando pela janela quadrada como se assistisse a uma televisão: os chinelos transformando-se em sapatos sociais e de salto alto, as paredes rabiscadas virando grades altas, fachadas mal cuidadas tornam-se vitrines perfeitamente lustradas. Ela desce do ônibus e os passos não são mais tão apressados. Nessa manhã de sábado, o sol já deixou a timidez de lado e brilha soberbo, espremendo os olhos de todos os que caminham nessa rua, onde lojas com seus letreiros brilhantes dividem espaço com os camelôs que ocupam as calçadas. Por ela, passa uma família: a mãe olha a vitrine, o pai carrega algumas sacolas de papelão, os dois filhos saboreiam um picolé com a ajuda de uma mulher, que parece ser invisível aos olhos de todos, menos daquelas duas crianças. A babá observa esse passeio de sábado que em nada se parece com os seus e, após perdê-los de vista, se vê sozinha com sua imagem refletida na vitrine da loja e, atrás de si, o bairro. Algo parece errado, como se alguma coisa nesse reflexo estivesse fora do lugar. Os números na etiqueta do vestido que cobre o manequim branquelo são os mesmos que aparecem na sua conta bancária todo início de mês.

Ela entra no edifício e cumprimenta o porteiro, que já a conhece. Jogam um pouco de conversa fora até que uma mulher passa por eles sem dizer uma palavra, mas a careta no seu rosto é suficiente para que o porteiro se cale. Ela vai até os elevadores e encontra o social no térreo e o de serviço no último andar, mas por algum motivo o primeiro é invisível aos seus olhos, como se existisse ali uma barreira separando os dois. E, de fato, ela existe. Mais tarde, leva a criança para passear e, no caminho, ensina como ela só deve atravessar a rua na faixa de pedestres, dizer bom dia e não falar com estranhos. Mais à frente, cumprimenta uma menininha que sorri para ela na rua e ouve da mãe: “não fale com estranhos, filha”. Ela brinca, ensina o alfabeto, conta uma história e coloca para dormir. Ela cuida da casa como se fosse sua, zela pela criança como se fosse sua, afinal, aquela é quase sua casa, ela é quase da família. Esse quase que carrega um abismo, um quase que almoça com ela em pé com o prato apoiado na pia, que a acompanha na hora de dormir, num quartinho abafado no fundo da casa, cheirando a gordura. Um quase que sempre a lembra que ela nunca poderia pertencer àquele bairro. Ela é a estranha que não se pode cumprimentar.

Numa cidade que não é cenário, ela protagoniza um espetáculo que tem a urbe como palco, no qual a cena onde ela empurra um carrinho de bebê contém e conta a história de um país. Um país que se constituiu e se desenvolveu sobre um alicerce composto de conflitos, que estão sempre rondando a superfície urbana e afetando cada um que por ela circula. O tempo passa, mas esses conflitos jamais envelhecem; pelo contrário, sempre se renovam. Se personificam em situações cotidianas, em diversas mônadas espalhadas pela cidade e que qualquer um pode ver, inclusive a babá. No seu caminho, ela observa uma mulher com seu cachorro, ambos tão emperiquitados que mais parecem carros alegóricos. O animal, com o pelo brilhoso e exalando perfume, se lança a farejar um homem que dorme na calçada, feio, fedido e tão ignorado pela mulher que parece se confundir com o asfalto. A vitrine que, através das roupas expostas, promete beleza, felicidade e um bom desconto, não consegue esconder a escrita no muro ao lado: “Quantos vivem de lixo para que alguns vivam no luxo?”

Ela tem cor, mas não tem época. Por mais de 300 anos, ela teve seu filho arrancado de seus seios e se recolheu na senzala após colocar o filho da sinhá na cama. Hoje, ela deixa sua criança doente em casa porque precisa trabalhar cuidando das crianças da patroa. Em outra época, logo após depositar um beijo na testa tão pequena, branca como uma nuvem, da menina que lhe pagam para cuidar, ela entra no ônibus, escuro como a noite, e vê os bairros passando num dégradé invertido, o cheiro dos jardins se transformando no odor do lixo nas calçadas, até estar de volta ao seu devido lugar. Hoje em dia, da laje de sua casa, o ponto mais alto da cidade, ela observa as grandes e luxuosas coberturas. Com os pés no asfalto quente, ela consegue ver em um dos apartamentos o vidro da varanda embaçado pelo ar condicionado, no prédio que fica a poucos passos do morro onde mora, porém parece inalcançável.

Todo dia, a cidade funciona a todo vapor, como uma grande fábrica onde cada operário tem a sua função. Comerciantes fazem amizade com seus clientes para vender melhor, o guarda de trânsito e os pedestres se cumprimentam como se fossem velhos conhecidos a quem se deve afeto. Nesse contexto, não é de se estranhar quando trabalho e emoção se juntam. Enquanto uns cuidam de máquinas, outros cuidam de gente, e o salário no final do mês vai depender de quanto se sabe manejar um computador ou da qualidade do afeto e do zelo que se tem pelo outro. Enquanto em alguns casos os empregados batem ponto, saem para comer no horário de almoço e voltam para a casa no fim do expediente, em outros, as fronteiras entre trabalho e vida pessoal se dissolvem, a casa onde se trabalha é a mesma onde se habita (ou quase). Afinal, cuidado e carinho não têm hora certa; pode ser no feriado, fim de semana, de madrugada. O dever da babá é dar carinho e atenção àquela criança, mesmo que isso implique em deixar seu próprio filho sozinho.

A (não tão) simples cena de uma babá com um uniforme branco empurrando um carrinho de bebê comporta todo um mundo condensado em si. Abre-se diante dos olhos um mundo repleto de paradoxos e contradições, que denunciam a enorme ironia sobre a qual são construídas as relações entre as diferentes classes no Brasil e, quiçá, no mundo. No bairro onde a babá trabalha, existem pré-requisitos para “gente como ela” entrar e circular pelas ruas. É permitido cuidar dos filhos, educá-los, decidir quem entra ou não nos prédios, gerenciar a segurança de um estabelecimento e até construir um edifício, desde que se use o uniforme, um lembrete para eles e para os outros de que não pertencem àquele lugar. Sem tal vestimenta, eles incomodam, são desprezados, negados e expulsos. Com o uniforme, têm papéis decisivos na vida daquele bairro, daquela cidade. Mas, sem eles, não têm voz, não têm opinião, não têm lugar. Entrar no bairro é permitido, desde que seja pela porta de serviço. Ou servem para servir, ou não servem para nada. Vestem o uniforme toda manhã numa tentativa quase desesperada de, assim, deixarem de ser vidas nuas.

Não é de se estranhar?

 

Publicado hoje na Folha da Manhã

 

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Este post tem 5 comentários

  1. Paulo Sa

    Bem marxista! Uma pena.

  2. Savio

    Excelente este texto! Meus parabéns à Lara.

  3. Aluysio

    Caro Paulo Sa,

    Se tivesse que usar um “ismo” qualquer para adjetivar o texto, diria que ele é, sobretudo, realista.

    Abç e grato pela chance do debate!

    Aluysio

  4. Lucca

    Muito bom o texto! Parabéns!! Continue assim!!

  5. Neto

    Belo texto!
    Além de tudo, corajoso por tratar de um assunto tão gritante em uma sociedade ainda gravada pelas reminiscências escravocratas.

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