Por Aluysio Abreu Barbosa
“Fragmentos da obra do Pessoa são muito conhecidos. O poeta propriamente acredito que não. Muitos já leram ou escutaram os famosos ‘Tudo vale a pena se a alma não é pequena’, ou ‘O poeta é um fingidor’, mas nem todos associam ao poeta. O espetáculo é todo centrado na obra, que deve sempre ser maior que o homem. Acredito que esse tipo de trabalho contribui para a popularização dos poemas”. Esta é a intenção assumida pelo diretor, ator, produtor e compilador da obra do poeta português Fernando Pessoa (1888/1935), o dramaturgo e também poeta Adriano Moura, para o espetáculo “Pessoas”, que tem sessão única hoje, às 20h, no Sesc de Campos, na avenida Alberto Torres nº 397. Além de Adriano, compõem o elenco o ator Tim Carvalho e os músicos Renato Arpoador e Matheus Nicolau, a quem coube musicar alguns poemas do maior nome do Modernismo de Portugal.
Em vida, Pessoa publicou um único livro, “Mensagem”, composto de 44 poemas. A maior parte da sua obra, guardada num mítico baú, foi descoberta pelo grande público só após a morte do autor. E ela até hoje impressiona, não só pela qualidade e quantidade, quanto pelo fenômeno da heteronímia, na qual, além do Fernando Pessoa ortônimo, estão também o modernista Álvaro de Campos, o clássico Ricardo Reis e o naturalista Alberto Caeiro, considerado pelos demais como mestre. Isso só em poesia, sem contar a prosa de Bernardo Soares, outro entre as dezenas de heterônimos catalogados, a maioria não escritores, que se diferem do simples pseudônimo pela vida própria que carregam, com toda uma biografia independente do criador.
Como o espetáculo se atém à criação poética de Pessoa, além dele próprio, também estão presentes Campos, Reis e Caeiro. Ao todo, “Pessoas” traz 21 poemas dos quatro poetas que habitavam em Pessoa, 10 deles musicados. Com apenas 23 anos, Matheus encarou a missão dessa transposição com aparente consciência da responsabilidade:
— A proposta de musicar poemas de Fernando Pessoa é muito ousada. Além de ser um desafio, pode soar como um atrevimento. Minha maior preocupação era criar algo digno, que não ferisse a obra, para que aqueles que apreciam a poesia do Pessoa as encarassem de forma natural. Nesse processo, algumas músicas foram surgindo de modo natural. Depois de extrair a essência do poema e achar uma linha melódica que converse com ele, o próximo passo era só uma questão de adequação métrica, que em alguns casos foi mais difícil.
Para Matheus, que debutará como ator no espetáculo, a musicalização mais difícil foi de “Mar Português”, justamente um dos poemas publicados na “Mensagem”, no qual estão os versos talvez mais conhecidos de Pessoa: “Valeu a pena? Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena”. Na montagem goitacá, o poema ganhou versão em fado, estilo musical que está para Portugal como o samba, para o Brasil.
E se Adriano lembra que a poesia surgiu com a música, a partir do grego Homero (séc. 8 a.C.), na tradição dos rapsodos, andando de cidade em cidade com suas liras, cantando em versos os feitos passados de sua gente, não deixa de ser curioso lembrar que foi em “Mar Português”, assim como nos outros poemas da “Mensagem”, que Pessoa cantou, no início do séc. 20, as glórias do seu povo nas grandes navegações dos sécs. 15 e 16. Semeado nelas, além do domínio do Ocidente sobre o mundo, nasceu o Brasil.
Após dirigir e produzir o “Sarau de Chico Buarque” no Sinasefe, no início de novembro, num grande sucesso de público, Adriano não largou mão da velha lira homérica nessa sua investida cênica pela obra literária do mestre lusitano: “Acredito no poder da música como veículo de propagação da poesia”. Neste sentido, do fado de “Mar Português”, a universalidade de Pessoa é reafirmada em vários outros ritmos, como no baião para o qual os versos de “Conta a lenda que dormia” parecem ter sido originalmente escritos, no pungente blues de “O cão que veio do abismo”, ou no lamento sertanejo de “Carro de bois”, poema que Matheus confessou ter sido o mais fácil de musicar.
A maioria dos poemas escolhidos, no entanto, não depende de versões musicais, sustentados apenas na interpretação cênica dos quatro atores. Como explica Adriano:
— Queria muito revisitar a obra do Pessoa. Eu e Matheus fizemos encontros para ler os textos, escolher o que seria música e o que seria recitado. Queríamos algo que não se parecesse com um recital, mas que também não se aproximasse de um musical biográfico.
Pessoa poderia estar certo ao versejar pela pena quase sempre debochada de Álvaro de Campos: “Todas as cartas de amor são/ Ridículas”. Talvez não por outro motivo, seja de Ophélia Queiroz, infeliz noiva do poeta, o retrato que funciona como eixo em boa parte das cenas. Apesar de amar Fernando, a homônima portuguesa da noiva de Hamlet não tinha pudor ao afirmar: “Detesto Álvaro de Campos!”. No amor de Adriano, Matheus, Tim e Renato expresso no palco pelas “Pessoas” em Pessoa, ridículo é não comparecer.
Publicado na Folha Dois de hoje (11/12)