Guilherme Carvalhal — Vida submissa

Atari

 

 

Havia uma rua de classe média, do estilo mais clichê possível de uma rua de classe média. Paralelo a ela, havia um beco de casas mal ajambradas ao estilo de uma favela, do estilo mais clichê possível de casas de favela.

Ali morava Isaura. Trabalhava como doméstica até um problema gástrico a levar a uma série de operações e a incapacitar para suas atividades. Funcionária sempre informal, não conseguiu receber nenhum direito previdenciário e caiu em estado próximo à mendicância. Morava em seu barraco e vivia da caridade das senhoras de classe média, além de uns parcos benefícios da assistência social da prefeitura. Comparecia fielmente à igreja católica e isso demarcava o único laço de proximidade com sua benfeitoras: definia-se através da fé como boa pessoa e digna de misericórdia alheia.

Seu filho, Januário, acabou seguindo passos semelhantes aos da mãe. No começo da adolescência, ali nos seus 13 anos, tentou adentrar no grupo de garotos de classe média. Com seu short remendado e chinelo ajeitado com tachinha, procurou conversa em seu linguajar ruim de quem mal estudou junto aos garotos educados na escola particular.

Um dia, convidaram-no à casa de um dos meninos de classe média. Parecia um sonho, o reconhecimento, tornando-se um igual. Os pais não estavam em casa, apenas Januário e outros cinco, todos um pouco mais velhos. Sacaram um relógio digital, daqueles de pulseira de borracha comprado em barraquinha de camelô. Perguntaram se ele queria de presente e ele disse que sim:

— Então baixa as calças e vira para cá — ordenaram com olhar ameaçador.

Hereditariamente submisso, rendeu-se às enrabações dos garotos e retornou para casa recompensado com o relógio. Essas sessões continuaram, fosse uma camisa esburacada ou meia-hora jogando vídeo game como pagamento. Assim, desvencilhava-se de seu próprio corpo, não havendo um querer ou um não querer, apenas um compromisso com o qual precisava lidar para conquistar algo negado pela vida.

O passar dos anos afastou Januário daquela rua de classe média e do beco, frequentando cada vez mais a favela propriamente dita. Ali, submeteu-se ao crack e o contato com traficantes tornou-se mais constante (e os abusos sexuais permaneceram). Logo começou a traficar e parou na cadeia, onde seu corpo caiu nas mãos dos demais detentos.

Um dia, repercutiu a notícia de um tiroteio entre grupos rivais do tráfico. Januário levou dois tiros e foi parar na UTI. Um dos garotos da classe média, agora já graduado, casado e bem empregado, viu a notícia sem mais lembrar-se da identidade do baleado. Revoltou-se pelo fato da sociedade andar violenta demais.

 

*  Baseado em fatos reais

 

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Este post tem 3 comentários

  1. Edeilson Fernandes

    Impressionante a semelhança com um dos contos que escrevi. Se tivesse mostrado a alguém diria que fora plagiado. Infelizmente esta é uma situação tão real, mas tão real que talvez sejamos nós, que gostamos de escrever, que estejamos plagiando a vida. Parabéns ao autor. Um conto com todas as características exigidas ao gênero: introdução, explicação e desfecho.

  2. Gildo Henrique

    (…)fato de a sociedade andar violenta demais.

    Muito bom.

  3. Savio

    A realidade dita claramente tem este efeito. Constrange e sufoca.

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