Hoje, duas visões sobre a ocupação do Teatro de Bolso Procópio Ferreira, desde o último dia 9 (aqui), pelos artistas de Campos, foram publicadas. Uma, mais lírica e generosa, de autoria do escritor Fabio Bottrel, foi reproduzida como artigo principal de opinião da edição dominical da Folha, após ter sido publicada originalmente aqui, neste “Opiniões”.
A outra visão, mais objetiva e crítica, por parte do advogado, publicitário e crítico de cinema Gustavo Alejandro Oviedo, que se focou mais na pauta de 11 reivindicações (aqui) protocolada pelos artistas junto ao poder público municipal, foi publicada aqui, na democracia irrefreável das redes sociais. Independente do juízo de valor, interessante observar que, além de complementares na aparente oposição, ambas são visões sobre a cultura goitacá a partir da perspectiva de outras tribos: Bottrel é capixaba, enquanto Oviedo, argentino.
Abaixo, leitor, à sua reflexão, as duas manifestações:
Os novos Garotinhos
Por Gustavo Alejandro Oviedo
Após ter lido a lista da pauta de reivindicações elaborada pelo grupo Ocupa Teatro do Bolso, confesso que um calafrio me percorreu a espinha.
Os primeiros quatro pontos da lista exigem (este é o término correto) o seguinte:
1 – Administração compartilhada, ficando a cargo da associação #OcupaTeatroDeBolso a administração artística do Teatro, como pautas, projetos internos e divulgação, através de um contrato de concessão de direito real de uso do espaço. E a cargo da Prefeitura, os serviços de manutenção, limpeza, alvarás de licença, técnicos de luz e som, etc.
2 – Criação de um Fundo do Teatro de Bolso Procópio Ferreira para destinar 1% do IPTU e do ISS para fomentar atividades artísticas do teatro a ser administrado democraticamente pelos artistas.
3 – Até que este fundo seja criado por lei, solicitamos repasse de verba fixa para despesas oriundas da gestão artística do teatro via crédito adicional no Orçamento Público (LOA 2016), no valor de (trinta mil reais)R$ 30.000,00 /mês, conforme contrato que será proposto pelo Coletivo #OcupaTeatroDeBolso.
4 – Que todos anteprojetos de lei apresentados pelos artistas sejam encaminhados à Câmara pelo Gabinete da Prefeita em regime de Urgência.
O primeiro ponto da pauta pretende garantir ao grupo que ocupou o TB a administração exclusiva do espaço cultural; os dois seguintes, dinheiro para os administradores – livres das despesas. O quarto é simplesmente uma confirmação da arrogância.
Pelo visto, para o Coletivo Ocupa Teatro De Bolso, a iniciativa da ocupação outorga direitos pessoais e permanentes. Isto é, dado que foram eles os que ocuparam o espaço, são eles os merecedores da sua direção. Não parece ser uma idéia muito democrática, ainda mais quando consideramos que as pretensões do grupo foram impostas aos representantes do governo municipal sem a menor chance de discussão ou debate. “Nada temos a fazer aqui” teria sido a resposta de Garotinho antes de abandonar a reunião.
Não se pretende questionar aqui o valor e a importância cultural dos projetos dos integrantes que estão ocupando o Teatro de Bolso, nem os de seus simpatizantes. E não se questiona pela seguinte convicção pessoal de quem subscreve: cultura, como religião, não se discute — e, como religião, não se impõe. A cultura, ou bem existe, ou bem não é nada. O que determina a existência de uma manifestação cultural é a sua produção e o seu consumo.
Todo mundo tem direito a produzir cultura, mas ninguém está obrigado a consumi-la. A relevância de um determinado produto cultural está dada pela crítica e pelo público. Quando a arte vive, ela acontece. Seja num galpão, numa praça, numa sala de cineclube ou num vídeo de Youtube. Quando a arte agoniza, por falta de procura, ela precisa de respirar através do aparelho do estado e do ‘fomento cultural’.
O pessoal do Ocupa TB tem todo o direito de exigir a abertura do teatro de Bolso. Mas se arvorar no direito de administrá-lo e ainda pretender receber por isso, apenas por ter tomado a iniciativa de invadir o lugar, tem outra finalidade: é querer se transformar num burocrata da cultura, com verba vinculada.
Se a intenção do movimento fosse verdadeiramente democrática, apenas duas reivindicações deveriam constar na pauta de pedidos: o funcionamento imediato e pleno do Teatro de Bolso, e a disponibilidade da sala para qualquer grupo artístico que ali queira se apresentar, a qualquer dia da semana. Os custos de manter o teatro aberto correriam por conta do Município; o sucesso ou o fracasso daquilo que for colocado no palco seria responsabilidade de seus organizadores.
Nos primeiros dias da ocupação alguns apontaram, e festejaram, a ironia de Garotinho estar sofrendo hoje como governante aquilo que ele próprio fez, como ator, na década de 80, quando comandava a Associação Regional de Teatro Amador. Todos comemoram a reviravolta do destino contra Anthony Matheus, enquanto ninguém se atenta que a história pode se repetir, e que um novo Garotinho pode se esconder por trás de uma pauta autoritária.
Bata fora, artista, como os anos pela vida!
Por Fabio Bottrel
Estalava o ventilador numa noite tão quente do ar machucar o pulmão. Com um violão, a esperança na mão, no palco do Teatro de Bolso um artista dormiu, e ao dormir sonhou que era um pássaro. Bateu as asas forte, tão forte, muito forte! E subiu, subiu, subiu. Achou uma fresta num cano escuro, entrou e voou além do teto, subiu, subiu, subiu, viu, toda a cidade iluminada, a ponte verde ao lado do abandono rosa. Enquanto o vento frio soprava no seu bico, sentia o pequeno coração bater acelerado com as asas abrindo altas e donas do céu estrelado atrás de si, sentia o ar entre as penas, a vida longe de ser pequena. Do alto viu sua morada, no telhado do teatrinho, um velho ninho amassado e usurpado por predadores ao longo do tempo. Ali estavam seus filhos gritando, aproximava-se uma trupe de aves de rapina para roubar-lhes a casa. Desceu com toda a força, bateu forte as asas como batem os segundos no tempo, desceu, desceu, desceu enquanto o vento passava como passam os anos pela vida o levando há 48 anos atrás…
…Ainda era sua primeira muda de pena quando levava alguns pedaços de palha no bico para construir um aconchegante e pequeno ninho no telhado do teatrinho, escutava as vozes de Gilda Duncan, Rubens Fernandes, Nely Fernandes, Paulo Roberto, Romilda Nunes e Odilon Martins ecoarem e chegarem aos seus ouvidos através da pequena fresta do cano no teto enquanto a cidade iluminada observava a primeira peça no Teatro de Bolso, onde construiu sua casa às vozes de A Moratória, em 15 de abril de 1968. Sentia nas patinhas os tremores dos aplausos, olhava as ondinhas que o vento fazia no rio Paraíba, arrumava palha por palha alinhavando seu ninho e depois empoleirava-se no muro para ver todo o mundo ir embora, quando o último ia, voltava para sua casa, ficava a observar as estrelas até seus olhos fecharem…
De manhã bateu as asas como batem os segundos no tempo, o vento passava como passam os anos pela vida e após 7 rajadas quebrou a asa num tronco soltando 26 penas no Boulevard Francisco de Paula Carneiro. Banhou seu canto com silêncio, não haveria mais dança nesse terreno, corpos ao relento, sua árvore fora cortada. De peito estufado, que pássaro da arte não se dobra com a dor, viu seu coração ser demolido, pétala por pétala, pena por pena. Ali ficou, demorou, caminhou, voltou para a sua casa, no telhado do Teatro de Bolso, chorou. O tempo derramou três lágrimas de silêncio enquanto a pele do pássaro enrugava, em agosto de 1978, na solidão de seu ninho, pôde voltar a admirar o canto dos atores ecoando pela fresta do cano no telhado, anunciando O Pagador de Promessas de Dias Gomes, numa montagem com Orávio de Campos enquanto o mar de luzes da cidade era o holofote do seu palco. Nesse mesmo dia, um passarinho com cores tão vivas que mesmo no escuro pareciam brilhar pousou no muro do telhado e ficou a olhar, imaginar, enquanto ouvia Marisa Almeida e Roberta Nogueira cantar, dançar nas ondas sonoras do ar. O passarinho se aproximou e o pássaro da arte curvou sua cabeça na alegria de ser, um dia, a saudade de alguém. O passarinho colorido subiu ao ninho, se aconchegou, asa com asa, pena com pena, protegeram-se do frio dobrando as patinhas dentro do ninho, e de que importava o mundo se estavam juntos?
Bateram as asas como batem os segundos no tempo, o vento passava como passam os anos pela vida e no silêncio costumeiro do frio alienador o pássaro voltou para a casa e viu três ovos, que foram se romper com a trilha sonora de poesias nas vozes de Osório Peixoto, Fernando Rossi, Adriano Moura e Kapi em 27 de março de 1991. Nasceram, filhos da poesia e das cores, filhos das vozes eternas que ecoam no vazio das reles rouquidões. Com a alma dos artistas moldaram seus cantos.Cresceram, pássaros da planície imensa, da angústia imensa, da luta imensa, densa, seus cantares pediram bença à arte.
A vida era boa naquele teatrinho, brincavam de descer na fresta do cano no telhado e se empoleiravam ao lado dos refletores que iluminavam o palco. Olhavam os artistas ensaiarem com o coração a vapor, voavam entre eles como um balé encenado, sapecavam de poltrona em poltrona até saírem pela janela para continuarem as brincadeiras nas árvores da avenida 15 de novembro. À noite iam se aconchegar, os três filhotes e os pais dentro do ninho, e ver toda a cidade aplaudir os atores que antes encenavam para as cadeiras vazias. No eco de suas almas bateram as asas como batem os segundos no tempo, o vento passava como passam os anos pela vida levando a 2014…
…Desceu, desceu, desceu! Enquanto batia forte as asas para proteger sua família, lembrava de ter visto os pássaros dissimulados nos entornos, aves de rapina com pele de cordeiro, chegaram até a sua casa pelo inverno, comendo as últimas folhas das árvores que morreram sufocadas. Ouvindo seus filhos gritando enquanto tentavam se defender, batia as asas até quebrá-las de tanta força, desceu, desceu, desceu! Com o bico afiado enfiou no olho da primeira ave que viu, mas eram muitas, e viu, seus filhotes mortos no bico da ave maior, carregados e dissolvidos na noite. Enquanto lutava, suas penas foram arrancadas uma por uma, olhou seu companheiro se debater sem vida no cimento frio do telhado enquanto as cores se tornavam apenas vermelho. Machucado, o pássaro da arte apoiou seu bico no cimento áspero ao lado do pescoço aberto de quem agora é sua saudade, e dormiu. Ao dormir sonhou que era um artista, no centro do Teatro de Bolso, em meio ao silêncio campista, segurava um poema de Eduardo Alves da Costa, com os braços abertos e o pulso sangrando recitava fragmentos da alma para a plateia de cadeiras vazias:
“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
— Bata forte, artista, como os anos pela vida! — Gritou uma voz sem corpo no meio da escuridão. O artista não teve medo, ocupava sua casa com o coração e a alma abraçada às de outros artistas — cujo tempo já havia levado o corpo — sonhando com o dia em que ali ganhará seu pão.
— Meu bem, não se culpe tanto com o tanto de alma que és feito. Tire do seu rosto essa gordura dos três anos de solidão, tudo na vida deixa de ser, mesmo você. — Disse a atriz ao caos dentro do ator.
Ele correu para a coxia, arrumou-se rápido, era dia de peça na ocupação e sua voz não mais silenciada será escutada. De peito nu, no dia 15 de maio de 2016 o ator abriu os braços ao lado de Yve Carvalho e José Carlos Rosa enquanto encenava a peça Pontal, montada por Kapi. Com o corpo em cruz bateu forte no peito, como batem os segundos no tempo, o vento passava como passam os anos pela vida e quando o grito dos três anos perdidos bateu à porta, acordou!
Para quem quiser formar sua própria opinião a partir da multiplicidade de outras emitidas sobre o Ocupa TB, confira aqui e aqui as visões dos jornalistas e escritores campistas Paula Vigneron e Ocinei Trindade.
Na irrefreável democracia das redes sociais – essa expressão é ímpar realmente – venho acompanhando atentamente, meu caro e querido Aluysio Abreu Barbosa, as postagens e os comentários colocados ocasionalmente. Recordo-me que na questão da pauta, me manifestei, mais ou menos no mesmo sentido do Gustavo Alejandro Oviedo, mas, talvez imbuído de um prurido tolo, não fui tão incisivo como ele foi e concordo em essência com as críticas que ele teceu, sem papas na língua, é exatamente como ele disse, eu, de modo sutil, abordei “en passant”, um aspecto legalista da falta de personalidade jurídica do Coletivo, mas se olharmos pelo prisma prático, a proposta da pauta, engessa a questão e cria mesmo uma espécie de “reserva de mercado”, pois para se gerir, necessário seria a criação de cargos comissionados para se justificar a “autoridade” de gestão. O Gustavo foi pontual em suas colocações e faço desde já, uma autocrítica, pois só me lembro de ter curtido a colocação dele e não ter comentado com a devida profundidade que o Gustavo merecia, sorry Gustavo, “mea culpa, me maxima culpa”… Desculpas feitas e com certeza aceitas, vou falar que a posição do Fabio Botrell, lírica, poética, me encantou e fiz o devido comentário à ocasião e não serei repetitivo, pouparei os leitores eventuais, daquilo que comento, eu amei e ponto. E para não fugir ao hábito, parabenizo o Opiniões – que já adquiriu, personalidade própria, neste deserto de ideias que é a rede social – pois ele, o Opiniões, nos propicia o espaço aberto, democrático, para o debate franco e elegante, que é fundamental e necessário. Fraterno e forte abraço em todos, já que hoje, dizem é o Dia do Abraço.
Concordo com Gustavo!!!