Por Ocinei Trindade(*)
Dói sofrer abuso sexual. Em tempos de Internet então, nem se fala, pois há dor da exposição pública também. Há quem não sinta nada, nem se importe com o que os outros pensam e sentem, neste caso alguma vítima. Se você é ou já foi vítima dessa violência (des)humana, conhece bem esta dor. Se alguém teve a sorte de não ser (ainda) estuprado, torturado, agredido,constrangido, humilhado e ridicularizado por um ou mais agressores, pelo menos já ouviu falar de alguma história envolvendo pessoas que são submetidas a esta situação de escárnio e vergonha. São mulheres, meninas, adolescentes, jovens e idosas. Mas também há homens, meninos, jovens e adultos que também passam pela agressão de ter o corpo abusado, esfregado, socado, machucado por alguém que tem prazer e satisfação em fazer reféns, por conta de suas perversões e perversidades sexuais.
Em pleno século XXI, os instintos básicos descontrolados por parte de alguns indivíduos revelam o quão bestial ainda somos. Há quem sofra, mas há muitos que se comprazem, se deliciam com o sofrimento alheio. Queremos detalhes, queremos imagens, queremos fotos, queremos vídeos, queremos testemunhos de quem estupra, de quem é estuprado, de quem investiga denúncias desse crime, queremos todas as novidades possíveis para nos satisfazer. Deixamos de evoluir com saudades das cavernas? A libido ainda é o maior combustível para as relações humanas serem movidas e justificadas? O corpo invadido e tomado sem consentimento é um atentado desolador, devastador, é crime. E crime previsto em leis, mas até que ponto elas funcionam? O estupro é ainda uma das práticas mais comuns, nem sempre veladas por parte da sociedade ou de diferentes culturas e nacionalidades. O estupro tem sido ora fetiche, ora coisa banal na Internet, pois muitas pessoas têm compartilhado de um jeito ou de outro o drama de alguma vítima de violência sexual nas redes, sem se importar ou refletir verdadeiramente sobre o grave problema que é de questão social.
O Brasil e o mundo acompanham pelos noticiários e pelas mídias digitais nas últimas semanas a denúncia sobre a adolescente exposta nas redes sociais que afirmou ter sido violentada por 33 homens em uma favela carioca. Pois é, a Índia também é aqui, além do Haiti. e miséria é miséria em qualquer canto. A maioria de nós já julgou e condenou os envolvidos de algum modo. Alguns especulam que o sexo foi consentido pela garota, outros falam que ela era isso, aquilo e muito além nos termos mais depreciativos e machistas possíveis. É impressionante como muitas mulheres são tratadas com desrespeito quando o assunto é sexo ou prazer sexual. Se elas forem ou não forem recatadas, comportadas, religiosas, legalmente casadas com homens, contidas, o juízo de valor varia para mais ou para menos. Isto depende ainda do tribunal particular de cada acusador e juiz que posta rápida e confortavelmente em seu celular ou computador sentença para punir os outros. O inferno são os outros? Segundo Sartre, a humanidade está condenada a ser livre. Não é a primeira vez que uma notícia sobre estupro feminino ganha as manchetes dos jornais no Brasil e no mundo. Quando acontece, fazem muito barulho, protestam, dizem que vão combater, mas depois da eufórica novidade, o pior é que cai no esquecimento até um novo caso ser revelado e comover as massas. Alguém pode até dizer “que saco, outra história de estupro de mulher” ou “nossa, esses casos de pedofilia já nem dão mais ibope, prefiro ver novelas”. Já ouvi também: “o Brasil e o mundo carecem de orações”. Sim, até concordo, mas acho que estão faltando mais ações, pois a vida tem valido nada.
Vivemos em uma sociedade altamente machista e preconceituosa, mas não devemos esquecer que esse sentimento e essa cultura predominantemente masculinista envolvem também a opinião feminina como formadora. Percebo que muitas mulheres tendem a criticar e a condenar outras mulheres se estas não se enquadrarem em determinados padrões ou conceitos, dando aos homens certos privilégios e concessões. A filha costuma ser mais tolida que o filho, e este ainda conquista muito mais liberdade dentro das famílias que conheço. Tem certas coisas que para “homem pode,”, mas “mulher não pode, não fica bem”. Uma dessas coisas envolvem o sexo. Se muito praticado por eles, é status, prestígio e admiração devido a performances de macho poderoso e viril. Homem tem quer ter pegada, garantem. Entretanto, se elas têm uma vida sexual muito ativa e livre, ser chamada de piranha, safada, puta ou galinha em comentários fechados ou abertos (não esqueçamos a coisa explícita chamada Internet) é fácil, fácil. Já os gays e lésbicas podem ser associados a algum tipo de libertinagem e devassidão pelas mentes mais encaixotadas e preconceituosas. Aliás, preconceito é o que não falta em nossa sociedade online e off line. Tem de todo tipo, gênero, tamanho e cor, além de escrito, filmado, postado e publicado por aí. Preconceito e intolerância andam minando cada vez mais as relações humanas.
Não devemos esquecer que somos criados e educados por mulheres e homens (embora estes ainda não tenham assumido em boa parte, funções com a devida competência no papel de pai educador). Muitas famílias brasileiras são matriarcais e nossas escolas são constituídas em maioria por professoras. Fico curioso para saber como foram educados os 33 homens acusados de estuprar coletivamente a jovem, quais valores e conceitos aprenderam sobre respeito ao próximo, sobre os limites e gestos necessários quando se convive com a mulher, com o velho e com a criança. Culpar as mulheres que os criaram e os educaram é um risco tremendo. Todavia, não seria de todo mal refletirmos como as famílias brasileiras têm se comportado quanto ao cuidado e orientação que dão para seus filhos, independentemente de classe social, escolaridade, etnia ou credo. Sabemos que o Estado tem inúmeras falhas e está praticamente falido; a igreja se esforça, mas não consegue atender as demandas; a escola é outra instituição ameaçada e a saúde pública nem se fala; as polícias e os tribunais de justiça estão sucateados ou sobrecarregados; os parlamentos estão abarrotados de políticos inaptos que fazem leis que pouco servem ou que não servem para nada. Para as famílias sobrará a barbárie? Procura-se um salvador desesperadamente, mas convenhamos, se não nos salvarmos a nós mesmos, dificilmente alguém o fará.
O caso do estupro coletivo nos conduz direta ou indiretamente à posição de juiz ou algoz. Tendemos a condenar tudo e todos de acordo com nossos ânimos mais exaltados e feridos, e nem sempre corretos. Ter uma filha, irmã, mãe ou esposa estuprada é agressivo demais, porém são elas que sabem exatamente o que isto significa. Ser violentado sexualmente, sendo homem ou mulher, criança ou adulto é desafiador, uma ferida exposta difícil de cicatrizar sem marcas. Penso que os criminosos agressores maculam uma das coisas mais belas e prazerosas que é o ato sexual pleno, feito e praticado em comum acordo por aqueles que se amam, se desejam e se permitem. Para o cantor Erasmo Carlos, o sexo é uma das mais sublimes manifestações e materializações de Deus. Há muitos tabus quanto ao corpo, à nudez e à sexualidade. Os dogmas e as tradições religiosas orientam o máximo de cuidados e regras na conduta sexual de homens e mulheres. O que para muitos tem natureza pecaminosa, já para outros é só prazer e diversão, celebração hedonista. Se os textos sagrados oferecem uma vasta lista de condutas e práticas de “boas maneiras”, nossa legislação deixa brechas em muitas ocasiões sobre como tratar do assunto, julgar e condenar os responsáveis por violência sexual. Qual a pena ideal para quem cometer esse tipo de crime? Pena máxima ou a morte sumária? Quem no Brasil obedece às leis?
Em entrevista à jornalista Renata Ceribelli, a vítima do estupro coletivo disse que se sentiu constrangida e humilhada na delegacia onde prestou depoimento com a presença apenas de policiais homens. A repórter perguntou à jovem o que gostaria de dizer para aquelas pessoas que ali estavam para ouvi-la e não para condená-la, e para a sociedade que a criticou pelo estilo de vida que levava, por ser sido mãe aos 13 anos, por frequentar comunidades ou namorar rapazes suspeitos. A resposta foi: “eu espero que eles tenham uma filha”. O desabafo pode não ser consciente e pleno do ponto de vista de uma adolescente de 16 anos, mas parece ser quase uma sentença de martírio ou morte o fato de se nascer em um corpo feminino, que já estaria condenado por natureza ou destino a sofrer todo o tipo de ameaça. Infelizmente, por não querermos ou não sabermos nos colocar no lugar do outro, o mal que nos causam acabamos desejando o mesmo para os nossos opressores. Só que um erro não pode justificar outro erro.
Tornar público um estupro, denunciar alguém que praticou violência sexual é uma tremenda saga, além de correr mais riscos de retaliações e vinganças por parte dos acusados, de seus familiares e apoiadores. Por incrível que pareça, há quem condene a vítima e defenda quem forçou sexo com alguém. Não consigo achar a menor graça de quem faz piada sobre estupro. As redes sociais que alimentaram o vídeo do estupro coletivo também alimentam memes, gracejos e bromas sobre o caso. Enquanto escrevia este texto, eu mesmo recebi uma mensagem via celular sobre o noticiário falar de estupro no café da manhã e no jantar, além da madrugada na televisão, pois estava enchendo o saco essa notícia velha e requentada. Infelizmente, há quem ache pesado demais o tema e prefira fazer gozações humoradas sobre o assunto. Não rio. Sofro quando isso ocorre na rotina diária e também na ficção.
O dramaturgo Nelson Rodrigues escreveu Bonitinha, mas ordinária, obra que ganhou três versões no cinema brasileiro. A mais conhecida talvez seja a do filme dirigido por Braz Chediak, em 1981, e estrelado pela atriz Lucélia Santos. A cena do estupro coletivo é considerada uma das mais desconfortáveis e revoltantes de nosso cinema, posso arriscar. Outro filme perturbador sobre o drama de uma mulher estuprada é o francês Irreversível (2002), de Gaspar Noé, protagonizado pela italiana Monica Belucci. Já o americano Um sonho de liberdade (1995), de Frank Darabont, o personagem do ator Tim Robbins sofre estupros frequentes dentro da prisão (aliás, dizem que as prisões recebem estupradores com o mesmo tipo de tratamento, e não considero esta a melhor solução, se é que existe solução). Nestes três exemplos ficcionais há apenas um retrato mínimo do que passam as vítimas da vida real. Curiosamente, há quem se excite com isso e tenha esse tipo de fantasia sexual, bastante alimentada pela indústria pornográfica e disponível facilmente no primeiro click pela Internet. A tara gera dinheiro e audiência. Não quero e nem posso ser moralista, mas não deixo de questionar sobre o comércio dos corpos nas revistas como a Playboy, que traz Luana Piovanni em um “novo conceito” da histórica publicação; a altíssima exploração da nudez feminina no Carnaval do Brasil; o uso do corpo da mulher nas propagandas de cervejas excessivamente sexistas. Tudo isso me faz pensar qual é a mulher que de fato nos interessa e o que as mulheres querem ser de verdade. Cada um deve ser responsável pelo próprio corpo e fazer dele o que bem entender, mas já com o corpo do outro não temos a mesma autoridade ou liberdade.
E pensar que a maioria dos casos de violência sexual não é denunciada às autoridades, pois os crimes costumam ser cometidos em grande parte entre familiares, vizinhos ou pessoas conhecidas das vítimas. O estupro é um mal silencioso e quase sempre encoberto, seja por vergonha, medo, condenação pública, pressão religiosa ou moral, entre outras razões que só mesmo quem passa pela terrível experiência pode afirmar. Talvez pareça egoísta ou covarde de minha parte, mas eu não desejo ter filhas, nem filhos. Ainda acho este mundo um lugar muito perigoso, cruel, perverso e injusto para colocar em risco algo tão precioso e caro que é a vida de uma criança que deveria se tornar o adulto de melhor caráter e com a mais completa formação possíveis. Toda sociedade e todos os governos deveriam ter como prioridade cuidar do maior bem que dispomos: a vida. Mas sem amor, respeito e consideração, fica bem mais difícil. Para mim, o mundo faz cada vez menos sentido quando achamos coisa normal crimes e violências. Triste.
(*) Jornalista e poeta
Artigo publicado aqui, neste “Opiniões”, em 7 de junho, e republicado hoje (12) na Folha
A respeito do propalado caso de estupro, meu querido Ocinei Trindade, ao qual todos tivemos conhecimento lá atrás, haja vista a notoriedade que o fato assumiu, pois vídeos foram disseminados nas redes sociais, fotos, “zap zaps” e etc. De uma hora para outra, o mundo teve conhecimento e ficou estupefato, dados os números superlativos, 33 estupradores… Mas, há sempre um mas, tivemos algumas reações que me espantaram, ainda mais por virem de mulheres que justificavam o estupro como fruto de uma suposta permissividade da vítima, de que ela seria promíscua e coisa e tal. Eu fiz duas publicações mostrando a minha indignação, abordando a questão sob vários prismas, desde o legal e criminal, passando pela questão social onde a cultura machista que impera numa sociedade onde a maioria são as mulheres, mas o pensamento, o inconsciente coletivo é masculino, vi e vejo até o presente momento, que essas pessoas que entenderam que o estupro não foi estupro foi, ainda resistem em mudar a sua forma de pensar e em seguida, com novos acontecimentos, vejo ressurgir no horizonte o caso das “Meninas de Guarus”, que entre seus componentes hediondos e sórdidos, traz a questão do estupro, da pedofilia, do uso de drogas, do cárcere privado, da formação de quadrilha e devem ter mais delitos que devo ter esquecido, dominar a mídia, mas não dominar a mente das pessoas, eu vejo poucas manifestações de indignação por parte dos atores sociais, dos formadores de opinião, da sociedade como um todo, não só em relação ao caso do estupro coletivo, com também em relação ao caso “Meninas de Guarus”, como se eles, os casos que envolvem violência sexual, fossem crimes de segunda categoria, eu vejo uma inércia muito grande em relação a isso e isso, a inércia, a anomia que envolve essas questões muito me preocupa, pois me parece que em nosso estágio civilizatório atual, nós não evoluímos.