Toc, toc, toc…
Toc, toc, toc…
Daniel escutava o ruído do ponteiro dos segundos como se arranhasse o seu tímpano a cada batida…
Toc, toc, toc…
Enquanto a folha branca continuava em branco, estava sentado, tentando preencher o papel com sentimentos há duas horas e sequer a primeira palavra havia chegado. Sentia que estava chegando, era torturante, tinha vontade de gritar para que ela chegasse logo, pois já estava pronto para escrevê-la, mas sabia, de nada adiantaria. Continuou com as mãos sobre o papel, esperando as palavras chegarem, seu olhar de vez em quando se distraía e esquivava para frente, da sua janela via um mar de luzes contrastar com as esparsas estrelas no tapete negro do céu. Estava no alto da torre do condomínio Splendore, rente a Avenida XV de Novembro, à sua frente todo o bairro de Guarus tomava textura de uma obra impressionista com o amarelado das luzes se deitando no rio Paraíba à meia-noite. O conto tinha data de entrega para o dia seguinte e ele ainda não havia começado, sentia a ansiedade subir a garganta como uma pia ao ser desentupida. Decidiu abrir a última cerveja que tinha, já perdeu as contas de quantas vezes havia levantado para ir ao banheiro sem ter vontade e beber água sem ter sede, sabia de seu cérebro criando fugas para esses momentos de dificuldades e prometeu para si mesmo que essa seria a última.
Ploc, ploc, ploc…
Se arrependeu de ter aberto a cerveja, agora era mais uma coisa para distraí-lo, ficava escutando as borbulhas da espuma estourar, perfumando o ar…
Ploc, ploc, ploc…
Decidiu aceitar que ainda não estava preparado para escrever, voltou à idealização da história.
— Sobre o que é a minha história?
Não sabia, e chamava a si mesmo de idiota por tentar escrever uma história da qual nem fazia ideia. À altura dos anos de sua dedicação, não havia espaço para esse tipo de amadorismo. Decidiu começar primeiro com os personagens.
— Sobre quem é essa história?
— Pode ser sobre mim. — Ouviu uma voz na sua cabeça.
— Quem é você?
— Seu personagem. — Disse a voz.
— Qual o seu nome?
— Não sei, você ainda não me deu um.
Daniel analisou a voz pelo tom suave e um pouco grave, vislumbrou seu personagem como um jovem rapaz.
— Rafael. O que acha? — Perguntou Daniel.
— Pode ser Rafuxo?
— Rafuxo, apesar de ser uma boa marca de perfil, soa cômico, e não sei se adequaria ao contexto da história.
— Sobre o que é a história? — Perguntou Rafael.
— Ei, você já escreveu meu nome como Rafael, eu ainda nem aceitei… — Continuou Rafael.
— Pare de me chamar de Rafael, não gostei desse nome!
— Ok! Eu também não sei sobre o que é a história…
— Não sabe? Eu te ajudo a encontrar uma. — Retrucou o personagem. — Pode me chamar de João. O que acha?
— Acho que é um bom nome, João. Mas você decidindo as coisas assim me sinto sem domínio sobre a obra.
— Relaxa, você ainda nem começou a criá-la.
— Ok. Mas precisamos de mais personagens para interagir com você, senão viraria um monólogo e não é minha intenção.
— Nem eu gostaria de ser sozinho como você! Trate de me dar um destino diferente.
Pelo personagem ter surgido de Daniel, sabia da vida de seu autor, pois ainda não tinha uma própria, nem mesmo uma história, até o momento era um amigo que viviana cabeça do seu criador.
O autor ficou pensativo com a última frase do personagem: “Trate de me dar um destino diferente. ” Acendeu um cigarro e olhando a fumaça se esvair ficou a refletir sobre a vida. Sabia que estava perdendo o foco da história, mas das suas reflexões surgiam novas referências de escrita, era um ofício de autodescoberta.
Daniel era solitário como todo escritor dedicado às necessidades da sua arte, os artistas de hora vaga poderiam se dar ao luxo de ter uma vida normal, mas esses ele não chamava de artistas. Era gente que se completava de vazios em concursos de vida finda, almejando passar despercebido sua covardia de jamais suportar ser um artista. Ele ficava a observar os que falavam com propriedade sem ter no sangue a veia da verdade, utilizando de títulos em papel barato para dar credibilidade a uma obra que só existe para si própria. Se não fosse pelo seu cachorro – Balzac, ninguém saberia se estava vivo ou morto, só saía do seu apartamento para levá-lo a fazer as necessidades, raramente encontrava alguém que lhe despertasse mais interesse que os livros. Às vezes passava semanas isolado, concentrado em suas obras e tinha em seus personagens seus amigos mais próximos, enquanto eles existirem nunca estará só, quando tem de matar um deles, mata também a si próprio na dor d’uma despedida de alguém que só existiu dentro de alguém: não há corpos para todas as almas. Às vezes observava nas expressões das pessoas uma pena ao descobrir sua solidão carente mesmo de família, seu único parente tinha quatro patas. Daniel não gostava quando olhava essa expressão, preferia não falar da sua vida fora do padrão, as pessoas não entendiam, suas necessidades não eram superficiais, mas profundas, assinou a vida e a morte com a arte em primeiro lugar, esse era o sentido da sua existência e a existência é muito maior que a vida.
Já era madrugada e a cerveja havia acabado, não tinha mais dinheiro para comprar outra – mazelas do ofício que escolhera, essa própria foi deixada em sua casa por um amigo. Estava cansado, preparou sua cama para deitar, estava frio e se cobriu com o edredom mais grosso que possuía. Ao deitar o sono se foi, ficou a olhar para o teto até que escutou uma voz feminina.
— Tire a mão de mim, seu crápula!
— Eu não encostei em você, sua maluca! — Ouviu João responder a voz que acabara de aparecer.
— Encostou, sim! Só porque ainda estamos na cabeça do autor não significa que você pode fazer o que bem entender!
— Não crie essa mulher doida, Daniel! — Suplicou João para o autor.
— Eu ainda não a conheço.
— Prazer, Amanda.
— Por que vocês já vêm definindo até o nome? Eu sou o criador de vocês, essa é a minha função.
— Você não consegue colocar umapalavra no papel e reclama de já aparecermos com o mínimo para uma personagem decente. Ah, me poupe! Odeio ser criada por um escritor com bloqueio, temos de fazer trabalho em dobro!
— Eu não estou com bloqueio.
— Não… então por que está aí olhando pro teto?
— Tá bem. Então me ajude a criar a história.
— Aí, tá vendo?! — Replicou Amanda. — Tão bom quando a gente já nasce naqueles escritores que sentam de frente para o computador e escrevem tão rápido do teclado chegar a tremer. A gente já vem ao mundo dentro de uma história em vez de ficar discutindo o que deve acontecer… Mas tudo bem… a história pode se passar em Campos dos Goytacazes e…
ZzZzZzZzZzZzZZzZz…
— Acho que ele dormiu… — Disse João.
— Pois é, tadinho… parecia cansado mesmo. Vamos ter de esperar ele acordar para existirmos.
— Só espero que ele se lembre d’a gente quando acordar…
***
— Au! Au! Au!
Daniel abriu um dos olhos, o dia já havia amanhecido e seu cachorro alertava a hora de ir passear. Espreguiçou dando um aperto no edredom, sentou na cama ainda sonolento, olhou sua cara amassada no espelho do armário e levantou. Escovou os dentes duas vezes, como sempre fazia depois de lavar o rosto na pia. Colocou um pouco de ração para o cachorro, enquanto o bichinho comia ele trocava de roupa e logo depois esperava Balzac na porta.
Sempre dava a volta no quarteirão, mas naquele dia algo lhe tirou da rotina. Viu um carro todo amassado oriundo de um acidente, ao lado a mãe desesperada chorava por ter perdido o filho, não estava morto, não estava ali, havia sumido, sem mais nem menos. Daniel ficou estático olhando para o acidente e tentando entender enquanto alguns fanáticos religiosos discutiam ao seu lado o poder de deus – quem levou aquela criança antes do acidente, enquanto outros diziam ser um delírio, que já não havia ninguém no carro mesmo. Chegava perto da multidão para escutar os murmurinhos, era sua matéria-prima mais autêntica e lamentou não estar em posse do seu caderninho de anotações, sabia, na mesma velocidade que a ideia chegava, ela também se esvaía. De súbito a voz feminina lhe veio à cabeça.
— Nem pense fazer isso comigo!
— Sim! Essa ideia é perfeita. Esse será o conflito central! — Disse o autor.
— Então eu não entro nessa história? – Perguntou João.
— Claro que entra! Você será o pai da criança perdida, marido da Amanda.
— Pelo amor de Deus, mas isso é sofrimento em dobro! — Podia até mesmo sentir Amanda pestanejando dentro de sua cabeça, estava pronta para ser escrita.
— Ah, como se fosse uma benção aguentar uma mulher doida que nem você! — Respondeu João com desanimo ao saber a escolha da história de sua vida.
Daniel correu para a casa enquanto seu cachorro não entendia e latia, ainda não havia acabado o passeio e isso era trapaça. Prometeu para o bichinho que compensaria na parte da tarde, levaria para a Praça do Liceu onde ele poderia se soltar, correr e ficar mais tempo do que os passeios cotidianos. Correu o máximo que pôde com medo da ideia desaparecer antes de poder escrever, tanto que nem Balzac conseguiu alcançá-lo.
Ao bater a porta do apartamento nem mesmo trancou, correu para o escritório, sentou e sentiu suas mãos tremularem, as ideias haviam chegado de supetão e todas ao mesmo tempo vigorosas para serem escritas pelas trêmulas mãos.
O barulho das primeiras teclas soou como a sinfonia mais harmônica aos seus ouvidos e seu corpo extasiou quando viu na tela as primeiras palavras em negrito:
Primeiro Ato
Continua no próximo sábado…
Sim, de repente me veio em mente, Fabio Botrell, uma lembrança de décadas atrás, quando morava na cidade do Rio de Janeiro e fui assistir uma peça do então denominado, “Teatro do Absurdo”, a peça se intitulava, se não me falha a memória, “Seis personagens à procura de um autor”, de Pirandello…
Essa peça impactou a minha vagabunda vida… Esse conto em três atos, eu já denomino que faz parte da “Literatura do Absurdo” – sem nenhuma conotação de desqualificação, muito pelo contrário – ele, o conto, já capturou meu coração e minha mente, pois vejo nele, sem conhecer os outros dois atos, uma coisa absurda de primorosa, vejo no conto, pelo seu primeiro ato, um autor em busca de personagens, que estão ali onipresentes e dominando as mãos do autor, transformando o teclado em verdadeira forma de psicografia…
Eu estarei aqui atento, se Aluysio Abreu Barbosa, me marcar em seu Opiniões, para ver o segundo e o terceiro ato.
Eu disse que o Opiniões de Aluyzinho era dele, mas faço uma ressalva, não é mais dele, é de todos nós que amamos e de alguma forma fazemos Cultura.
O Blog Opiniões, assumiu identidade autônoma e isso é bom, ou melhor, é ótimo. No aguardo do segundo ato… Do terceiro ato e do que mais vier para a frente, Fabio…
Legal! O duro é ter de esperar até o próximo sábado! Eu sei o que é sofrer este sufoco, porque passo por este “sofrimento” com o escritor e jornalista José Cunha Filho. Ele vai escrevendo os romances e me enviando os capítulos, um a um, é angustiante!
__E se no meio do “processo” o Autor morre? Como ficamos? E não me venha com a resposta do tipo “crie você mesmo o “destino” dos personagens, porque isto não funciona, e não é direito, personagem tem vida própria, personalidade, e só mesmo o escritor original pode “mediunizar”, interagir com a personagem.
Vamos aguardar “o próximo ato”, fazer o quê?
__Boitrel, trate de se cuidar, tome vitamina C, cuidado com H1N1, Zika e Mau Olhado!
Obrigado pelos “sobressaltos” que toda boa história provoca.
Li esta parte ouvindo isto:
https://www.youtube.com/watch?v=7eBOROfTm_k
Poxa e eu fiquei até o último momento esperando o começo