Carol Poesia — Marina não se sentia gente

Sentada no trono, a Deusa-Mãe de Çatal Huyuk, entre os primeiros assentamentos humanos, há cerca de 9 mil anos, na atual Turquia, hoje exposta no Museu Arqueológico de Ancara (foto: reprodução)
Sentada no trono, a Deusa-Mãe de Çatal Huyuk (6,7 mil a. C.), hoje no Museu Arqueológico de Ankara (foto: reprodução)

 

 

Foi num piscar de olhos que Marina cansou-se de todos. Perdeu a paciência com a vida em sociedade. Não aguentava mais casamentos, sentia fadiga só de pensar nos cumprimentos. Com as amigas de infância não tinha mais assunto. Sorria, calada, ao ouvir que abriram mais uma loja. Ela não tinha interesse. Esforçava-se, mas não sentia nada. Nenhuma empolgação. Foi da noite pro dia que Marina queria porque queria não ser mais gente. Era muito cansativo sorrir e conversar sobre as coisas de gente — marido, filhos, emprego, casamento. “Por que não nasci árvore, meu Deus? Ficar quietinha, só me alimentando de sol.”

Nos inevitáveis encontros com outros humanos — aniversários, matrimônios, confraternizações — Marina não reparava nas roupas, não estava nem aí para os sapatos. A comida ela apreciava bem, e quando comia, mergulhava em seus pensamentos e se distanciava daquelas conversas de mesa, aquelas conversas de gente. Tinha uma desculpa para apresentar-se calada, estava mastigando.

Assim como aos quinze foi aquela enxurrada de aniversários das debutantes, agora aos trinta aquela sequência de casamentos para os quais ela não tinha vontade de pose. Mas ainda ia. Para fazer vontade, não ser mal educada, não se sabe. Acho que Marina sentia culpa por preferir não estar ali, por detestar aquela papagaiada, por desejar estar internada só para não poder ir, então ia, para amenizar a culpa.

No último casório, festa de luxo, houve aquelas mesas grandonas que sempre te obrigam a sentar com quem não se tem intimidade. Pois bem. Marina cumprimentou, equilibrou-se no salto, sorriu para todos e sentou. Girava a cabeça suavemente para a direita e para a esquerda, querendo dar a entender que estava acompanhando a conversa. Em um momento, distraiu-se de seu objetivo e pensou em Kafka. Lembrou-se daquele inseto gigante de A Metamorfose e sentiu inveja de sua monstruosidade.

Ela olhava o requinte nas louças, guardanapos de algodão, taças de cristal e flores altas, ao passo que pensava em Gregor Samsa. O que aconteceria se ela, ela mesma sofresse uma metamorfose ali na festa? Se de repente, ali na mesa, sua pele se tornasse crespa e escura e endurecida como a casca de uma barata? Se seus dedos de manicure virassem patinhas e todos os talheres lhe escapassem? E se a sua cabeça fosse ovalando até achatar-se por completo na frente de todos? Ela imaginou-se inseto, à mesa, com os outros. Esse pensamento causou-lhe uma risada tão alta que os demais pararam de conversar e olharam surpresos. Ela percebeu e recolheu-se — “desculpa, é que eu lembrei de um negócio aqui”.

Recuperou-se do riso e continuou a comer. Não sentiu nenhum nojo de sua imaginação. O que a obrigou a interromper-se foi uma cólica repentina que a deixou sem posição. Era muito forte. Ajeitou-se na cadeira. Não havia modo. Uma dor incontrolável no ventre. Ela afastou um pouco a cadeira, ficou menos ereta, e curvou-se o menos possível, receosa de que alguém percebesse que por dentro ela se contorcia. Ao afastar-se da mesa percebeu seus pés escurecidos, inchados e com a textura alterada. Estavam deformados. Ela pensou “está acontecendo…”. Sentiu um misto de satisfação e medo.

Levantou-se com dificuldade e foi até o banheiro. Estava lotado. Ela pensou “Vai acontecer aqui, na frente delas.” e continuou o misto de satisfação e medo. A dor era tão forte que Marina, na fila, escorou-se na parede esperando sua vez para adentrar a cabine. Tudo doía. Uma dor que partia do ventre, mas chegava aos pés, explodindo na sandália, pernas e cabeça. Vagou uma cabine, entrou. Forrou o vaso, como de costume — com três papéis formando um “u”, levantou a saia do vestido, abaixou a meia calça e depois a calcinha alta, dessas que imprensam a barriga e sentou. Fez xixi, enquanto suava frio. Nesse momento tão íntimo retomou a imagem da barata. Como seria se ela saísse dali metamorfoseada? As amigas ao espelho a reconheceriam? Sairiam correndo assim que ela abrisse a portinha com as antenas? Jogariam nela o que tivessem à mão, como batom, bolsa e sapatos?

Sentada no vaso, afrouxou as tiras das sandálias, depois as tirou por completo. Sentiu um alívio imediato. Com o vestido suspenso e a cinta arreada nos joelhos, lembrou de uma liberdade rara, no cubículo, solitária. Queria ficar ali até a festa acabar. Deitou o corpo pra trás, esqueceu que não forrara a parte detrás do vaso, ela sempre fazia um “u” com o papel e não um quadrado, mas continuou recostada. De que adiantaria tanto asseio se ela realmente virasse uma barata?

Com pernas abertas e pés plantados no chão frio, a circulação melhorou, livres daqueles saltos e tiras. O peito do pé foi recuperando a cor, mas os dedinhos ainda estavam roxos. Ficou mais um tempo sentindo o ventre livre e aquele prazer de ter a si como única companhia. Depois se limpou e viu que ficara menstruada.

“Cacete!”. Enrolou um maço de papel higiênico e meteu na calça, a cinta era grossa, daria tempo de ir embora sem sujar nada. Deu descarga e recuperou todas as amarras. Finalmente tinha um motivo concreto para ir embora. E foi.

No caminho para o carro questionou-se por que teria saído da festa com a mesma aparência com a qual entrou… Concluiu que não era tão especial para merecer um desfecho tão fantástico quanto o de Kafka. Deduziu que a sua monstruosidade era banal.

E correu pra não manchar o vestido alugado.

 

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