Fabio Bottrel — Estação Bienal

 

Sugestão para escutar enquanto lê: The SecretWedding – James Horner

 

 

 

 

Escritor Fabio Bottrel
Escritor Fabio Bottrel (Foto de Diomarcelo Pessanha)

 

 

 

Agarrada à mão da mãe, Josefina ia contente em direção à IX Bienal de Campos, contando alto as pedrinhas encontradas sobre o asfalto, que imaginava ser terra preta feita de pedra muito dura.

— Fininha, minha filha, você saltita feito uma pulguinha!

— Estamos chegando, mamãe, deixe que eu vá, há tempos quero vir nesse lugar!

Os dedos de Josefina se desgrudaram um a um da mão mãe e ela correu com todas as forças de suas pernas, logo na entrada desviou dos lixos jogados no chão como um drible de um craque futebolista, deslizou na multidão e adentrou o espaço como manteiga desliza no pão. No meio do grande corredorbienalista, parou, abriu os braços, girou, olhando a imensidão de livros, cores e personagens nas capas. Livros baratinhos, que lhe abriam o sorriso, lhe enchiam o pequeno oceano em torno das pálpebras nos olhos, só foi perceber a boca aberta quando o ar gelado lhe percorreu o corpo por dentro.

Entrou num estande bem grande com muitos livros e cheiros diferentes, um bem colorido lhe prendeu a atenção mais do que os outros, logo na capa havia um campo com fim ao infinito, verde e florido com castelo e vestidos d’outra época. Sua mãe estava folheando páginas e mais páginas na estante no final do estande quando Josefina pegou o livro e abriu. Como se um novo mundo lhe saltasse aos olhos, logo no início conheceu a princesa Késia, que corria pelas falésias acima das falácias contra um enorme carcará, tão grande quanto as nuvens no céu…

“…Seus cabelos caracóis voavam com o galopar do alazão retirando do chão as gramas mais firmes, uma chuva tão fria quanto o gelo cortava o vapor exasperado por sua boca de lábios arroxeados e cortados, havia arranhões por toda a pele descoberta pela armadura e na sua espada carregava o sangue do inimigo, o céu anuviava-se de carcarás tapando com suas asas enormes o sol que mostrava a cara coberta de timidez. Uma grande sombra acompanhava a princesa, as patas do pássaro-monstro estavam próximas para segurá-la e levá-la para seu ninho onde seria mais uma a servir de comida para os demais…”

Enquanto Josefina lia, um inseto grande como um besouro pousou em seu ombro, ao sentir as patinhas bem finas alfinetando a pele magra tomou um grande susto, jogou o livro para o alto enquanto caía de bunda numa pilha de papel coloridosobre uma caixa de papelão. Quando se recuperou do susto ainda estava jogada na caixa, olhou à sua volta e não encontrou sua mãe, nem ninguém, o tempo havia escurecido e apenas o frio rondava o ambiente. Na bienal inteira o único som que escutou foi de seus passos pelo corredor.

— Mãe? Mamãe?!! — Gritava Josefina enquanto sentia o medo subir pelos seus pés até o cabelo, estava sozinha e pensava será que li tanto tempo assim pra todo o mundo ir embora e esquecer de mim? Não é possível! Foi só uma paginazinha, bom… eu acho…

— Mãe? Mamãe?!! — Continuava Josefina a gritar, mas nada de se acalmar, sentia, sua mãe não apareceria, e nem ninguém. Enquanto caminhava olhando para todos os cantos viu uma luz entrando por uma das saídas da bienal, caminhou nessa direção e quando colocou os pés afora percebeu que toda a cidade havia desaparecido, um enorme campo verde tal como no livro cobria toda a sua vista, ao longe um grande exército de cães montava sobre cavalos e se comportava tal como pessoas bradando espadas e uivando forte para o alto cavalgando atrás da princesa Késia sobre as falésias acima das falácias vindo em sua direção. Josefina abriu a boca tão estática como se esquecesse do próprio corpo, viu sombras como se aviões sobrevoassem o local pintando o chão em chiaroscuro, olhou para o céu e viu os gigantescos carcarás com caras muito feias e grunhidos muito bravos, um se aproximava dela em posição de ataque, pronto para pegá-la. Josefina gritou alto, muito alto, sentiu um pavor atroz, lembrava da música Carcará, pega, mata e come! Carcará não quer morrer de fome, mergulhou no céu azul em direção a Josefina, quando suas patas prestes a pegá-la pela cabeça a menina é agarrada pela princesa e jogada sobre as crinas do alazão que galopava para o lado enquanto o pássaro levantava golfos de terra com sua aterrissagem improvisada.

Enquanto galopava deitada sobre a cela e sob as rédeas no alazão da princesa Késia viu o exército de cães, uns escoltando enquanto outros uivavam e guerreavam contra os pássaros gigantes. Logo o ambiente se preencheu de árvores e sombras, haviam entrado numa mata fechada onde os carcarás não conseguiriam encontrar, mas não pararam de galopar até entrar em uma caverna escura e com entrada muito fina para depois se abrir num enorme reino com árvores de troncos gigantes protegendo todo o céu com lanças fincadas em suas madeiras, compondo um imensurável globo da morte. Cavalgaram ao redor de uma montanha no centro do local, subindo por uma estrada íngreme até chegar um grande portão de madeira, que logo fora aberto e todos apearam de seus cavalos com alguns gatos do tamanho de gente grande vindo dar as boas-vindas e pegar os cavalos. A pequenina não sabia como agir agora que estava de pé e parada, achava tudo tão estranho que não sabia nem mesmo qual o nome para o que sentia. A princesa se postou diante de Josefina e a olhou dentro dos olhos.

— Olá, eu sou a princesa K…

— Késia!

— Como sabe meu nome?

— Meu deus, eu estou dentro do livro!

— Que livro?

— O seu!

— Meu?

— Sim, conta a sua história contra o exército dos gigantescos carcarás… ops… acho que temos um problema…

Josefina estava reconhecendo a passagem da história onde uma visitante chega ao castelo e logo depois houve um ataque tão forte a ponto de abalar toda a estrutura. Olhou para os cães desembainhando suas espadas e lembrou desse trecho, olhou as portas do castelo emperrando para fechar e lembrou desse trecho…

— Que problema? — Perguntou a princesa.

— Nesse momento da história o castelo é descoberto pelos carcarás e…

Um grande baque corta a fala de Josefina, todo o chão se cobriu de sombra pelas asas de um enorme pássaro nervoso pousando sobre o globo desprezando as lanças pontiagudas, as quais arrancava com o bico com tanta facilidade que aparentavam palitos de dente.

A princesa imediatamente se espantou com a previsão da pequenina e correu enquanto gritava para que levassem a menina para dentro do castelo em local seguro, mas esse não era o certo a se fazer, Josefina já sabia a história e o que aconteceria, o castelo desmoronaria.

— Não!! Não vá para lá! — Disse Josefina à princesa, que se dirigia para o alto da torre principal a fim de guerrear contra os pássaros gigantes.

— Tudo ruirá! Precisamos sair! — Mal Josefina terminou de falar e a torre ruiu com os carcarás adentrando o globo e desmoronando a estrutura ao aterrissar com firmeza.

Josefina sabia do livro dentro da bienal, se ainda existisse poderia olhar na história e achar uma solução para a catástrofe que acabara de acontecer. Pegou o alazão da princesa e correu, correu, correu em direção à estrutura de tendas d’onde houvera saído. Passou pela mata densa, os buracos saltados pelo cavalo, e logo no final da vista já se via as tendas da bienal cercada pelos enormes pássaros. Inclinou seu corpo para frente, não entendia como sabia galopar tão bem logo na primeira vez a montar um cavalo tão grande quanto aquele e como um jóquei pressionou seus pés nos estribos, levantou seu corpo imaginando assim o cavalo tomar mais velocidade. Galopou tão rápido que o vento quase a derrubou e passou sem dar chances para as aves monstras lhe alcançar.

Josefina apeou do alazão já dentro da solitária bienal como um quartel fortificado, correu para o estande procurar o livro, mas não o encontrava, em seu lugar havia um livro manchado de verde e sangue com um jovem índio bradando um grito feroz enquanto estufava o peito com força e abaixo da imagem estava escrito:

— Sou goitacá, descendente dos maiores guerreiros dessa terra! Nesse chão sagrado não se curvará nenhum de nós!

O dia estava ensolarado quando urrou o jovem índio com uma machadinha na mão correndo enfrentar a multidão de invasores de sua terra, pensava ser um bom dia para guerrear, sabia, o tempo limpo daquela maneira eram os olhos dos espíritos de seus ancestrais. Se juntou aos de sua tribo, os rostos se contorciam de bravura e os músculos da perna se torneavam com as passadas fortes e velozes em direção aos inimigos…”

Josefina viu um raio de sol banhar uma de suas mãos que seguravam o livro, logo percebeu todo o ambiente iluminado, o tempo nublado havia sumido junto com o cavalo alazão e o clima estava mais ameno também, não sentia mais frio. Pensou, tudo voltara ao normal, encontraria sua mãe vindo pelo corredor, mas olhou, olhou… e não viu ninguém, nem mesmo um sinal de existir alguém ali, um som, um barulho, ou algo parecido. Viu toda a estrutura do local balançar com o vento forte uivando lá fora, ouviu passarinhos cantando e som de natureza quando esta mostra a sua beleza.

— Mãe? Mamãe?!! — Gritava Josefina a caminhar pelos corredores soltando pelo ar bufos de tristeza por não encontrar sua mãe, a essa hora ela já devia estar preocupada por estar tanto tempo longe de sua filha e Josefina pensava no que dizer, sua mãe não acreditaria nas peripécias que ela acabara de viver.

A menina caminha para fora da bienal e quando chega à saída vê uma enorme planície verde, tão grande a lhe fugir os olhos, tão colorida a lhe ofuscar os olhos, tão límpida a lhe enganar os olhos. No meio, um pequeno vazio separa um exército europeu de um indígena, logo o vazio se preenche com os dois se embrenhando numa guerra sangrenta. Como tintas numa tela de pintura, o sangue era jorrado para o alto e aos montes, coloriam de vermelho a vista e o coração de Josefina, apavorada com tanta violência. Viu uma sombra, perto de seu corpo e quando olhou para o lado notou um velho índio que aparentava estar há tempos ali parado a observá-la, ele lhe estica as mãos e faz um leve aceno com a cabeça para que ela segurasse.

Os dois correm pela planície afora e Josefina não entende como alguém com a pele tão marcada pela velhice tinha tanto fôlego para correr daquela maneira, o velho não se cansava e Josefina já estava ofegante. Após um longo período correndo, começaram a caminhar, mas o velho nada de falar, Josefina achou estranho, mas preferiu não comentar. Andavam sobre uma enorme montanha sem vista para a bienal, o dia já ia se deitar e a noite se preparava para tomar o seu lugar. Oalto da montanha era adornado por várias ocas e quando o velho índio apontou para uma com cores tão vivas que brilhavam como as estrelas naquela noite, Josefina deduziu, ali seria seu lar de agora em diante. Quando olhou para baixo, viu sob as nuvens de neblina os guerreiros sobreviventes da tribo retornarem, alguns carregados, alguns intactos, todos aparentavam concentrados.

Ao redor d’uma fogueira, todos olhavam Josefina, os carregados e os intactos que agora estavam ao seu lado, as mulheres, os velhos e as crianças. Diante das fagulhas de fogo subindo céu afora o cacique começou a falar e a menina notou que não havia chegado nessa parte do livro para saber o que iria acontecer.

— Hoje a profecia se concretiza, a menina vinda das palavras chega a nossa terra e trará a bonança do solo sagrado de nossos ancestrais. Hoje os espíritos falarão através desse couro guardado há séculos e a partir desse momento haverá fartura de animais, fartura de chuva, fartura de frutas.

O velho cacique entregou um papiro bem antigo à Josefina com letras pretas já deteriorando sobre a luz do fogo que tornava o papiro tão velho quase transparente, sob a noite estrelada a menina leu as palavras guardadas há séculos.

— Na terra onde os ventos sussurram como o último suspiro, onde os homens nada podem fazer diante de tanto ódio, onde as palavras são veneno e antídoto, lá, onde a luz e a lua são tão longas que os personagens dessa terra poderiam viver toda uma vida dentro de um dia, lá, onde as sementes plantadas são as flores nascidas aqui, há uma menina Josefina vindoura das frases longas envolta às palavras cercada de ventos exasperantes das palavras adormecidas nos papéis. Com uma multidão à sua volta sedenta pelas letras falantes, a menina sairá das palavras e se tornará a…

Josefina sentiu-se bambear quando alguém esbarrou em seu corpo, ao olhar para o lado viu que estava em pé, não estava sentada, estava claro, não era noite e não havia fogueira, não havia tribo, apenas o livro em suas mãos, ao lado sua mãe continuava a folhear os livros na estante reservando a comprar os mais interessantes. Josefina largou o livro e correu abraçar sua mãe como se houvera passado uma eternidade longe e a saudade fosse insuportável, estava muito contente de vê-la. Sua mãe sem entender retribuiu com felicidade esse abraço de menina fantasiosa.

 

fb-share-icon0
Tweet 20
Pin Share20

Este post tem 3 comentários

  1. savio

    Upa! Que viagem! A sugestão musical foi perfeita, valeu!

  2. Flavia D'Angelo

    Grata!

  3. SÉRGIO PROVISANO

    Sim, sim… A leitura nos transporta por portais que vão além da imaginação e Josefina viajou nos tempos. eu amo ler, meu caro Fabio e, mesmo tardiamente, não poderia deixar de registrar que adorei o conto…

Deixe um comentário