Paula Vigneron — O outro

 

Fogueira acesa para a roda de jongo em Machadinha, comunidade quilombola de Quissamã, em 27/10/16 (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)
Ao pôr do sol, fogueira acesa à roda de jongo no terreiro diante da igreja de Machadinha, comunidade quilombola de Quissamã, em 27/10/16 (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)

 

 

Entre pingos de chuva e gotas de lágrimas, trafego por caminhos interiores, perdidos, escondidos. Isolados. Aquieto-me em um canto escuro, refúgio onde não serei encontrada facilmente. Ando, paro, volto. Olho, analiso. Reflito. Nas retinas, imagens sobrepostas. Diante da expressão aparentemente fria, apática, cética, que guarda casos e memórias, aparências se desfazem e se refazem. Idas e vindas. As dores estampadas em capas e caras, pertencentes a outros, muitos, vários. Elas falam diretamente a mim. Gritam em minha direção nomes, passados, presentes e futuros.

Ontem, éramos crianças que corriam atrás de bolas, bonecas, brincadeiras. Encontrávamos braços quentes à nossa espera em casas de gritos sufocados propositalmente. As histórias transformadas em memórias revisitadas ocasionalmente para que seja possível seguir em frente. Ao meu lado, presencio perdas e ganhos. Perdas e danos. Danos, perdas, ganhos que fazem parte de uma vida que se torna minha por empatia.

“Não pense desta forma, menina. A vida é bonita”, diz um homem ao meu lado, capaz de capturar meus sentimentos a olho nu.

“Só para Gonzaguinha, seu moço. Para mim, a vida é bonita, feia; mãe, madrasta; amor, sangue; Pai, Filho e Espírito Santo.”

Ele apreende cada palavra não saída de minha boca, que, levemente puxada, esboça reações atípicas de um dia nebuloso. Seus olhos conservam espanto.

De volta ao interior, invadido por um estranho conhecedor de mim que desaparece tal qual a neblina, libero-me das amarras e me cedo ao outro, que permanece camuflado em minhas entranhas. Estás refletido em mim, meu caro. Ele claudica. Sigo junto a ele, que não é capaz de me ver. Só sente. Sinto-o com a mesma intensidade. Em seu rosto, enigmas indecifráveis. Em meus traços, oculto está o que arde e clama. Entrelaçamos dedos, carne e ossos em movimentos repetitivos e intensos. Por trás de seus olhos, minhas feições. Reconheço-o em meus pés, mãos, braços, pernas. Pelos, cabelos. Amores. Conflitos. Confrontos. Contrastes, imagens.

Prosseguimos eu e o outro. Caminhos perdidos na solidão.

 

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Este post tem 3 comentários

  1. Gildo Henrique

    “Em meus traços, oculto está o que arde e clama.”

    Inspira. Ação.

  2. Savio

    Dá é gosto ler esta menina! Sabe dizer sentimentos, desenhar palavras. Queremos mais, muito mais.

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