Sugestão para escutar enquanto lê: José Siqueira – Oração aos Orixás
Porto de Luanda
Angola, 1648
— Ndunduma, olhe pra frente!
— Pai, essas correntes me ferem.
Meu pai seguia atrás de mim com as correntes que nos uniam a centenas de outros da nossa tribo caminhando para entrar num navio chamado tumbeiro, hoje sei, era um navio negreiro. Sentia o cheiro de sangue seco brilhando nas peles marcadas pra longe do aconchego que só a nossa terra poderia nos dar, era desesperador não saber pra onde ir, era desesperador saber que a morte era melhor que prosseguir. Estava um tumulto muito grande próximo ao navio grande como eu nunca houvera visto nada igual, fiquei a imaginar como surgia aquilo que via. Os homens no entorno nos batiam sem motivo, vi muitos amigos caindo de cansaço e dores dos ossos quebrados sem entender por que os orixás calados os haviam abandonados de braços atados. Quando subimos no navio recebemos baldes de água na cabeça enquanto passavam algo que espumava em nossa pele, alguns mais bravios se tornavam arredios e apanhavam muito, às vezes perdiam os dentes ou os dedos das mãos. Logo após puxavam as correntes nos levando para um buraco no meio do navio onde tinham várias tábuas como prateleiras muito próximas umas das outras… mais uma vez foi desesperador quando começaram a nos colocar deitados naqueles buracosentre as tábuas espremidos um ao lado do outro a ponto de nem mesmo conseguirmos nos mexer, como se fôssemos mercadoria, até mesmo respirar era difícil, e a todo momento eu pensava que a prateleira de cima cairia sobre nós com todos que estavam deitados ali. Haviam muitos gritos, muita confusão, as prateleiras em pouco tempo se mancharam de sangue e quando os homens brancos que falavam uma língua desconhecida a nós voltaram para cima do navio, o silêncio veio, todos quietos, estávamos apavorados, em pouco tempo comecei a escutar os golfos das respirações desnortear e alguns choros logo se tornaram livres, as lágrimas começaram a limpar as manchas de sangue que umedeciam a prateleira de cima a ponto de pingar sobre a minha face, é dura a vida dos que entraram num beco sem saída.
Ali permanecemos durante muitos dias, alguns não aguentavam a imobilidade e acabavam se debatendo até enlouquecerem e machucavam os acorrentados ao lado. Comíamos muito pouco, às vezes comíamos pasta de alguma coisa uma vez de dois em dois dias, muitos sentiam fome e fraqueza, mas eu não sentia, em pouco tempo percebemos que meu corpo era diferente, eu não enfraquecia, mal emagrecia. Enquanto enfrentávamos tempestades no mar, alguns nauseavam com o balanço das ondas e vomitavam em quem estava ao lado ou em si próprio, demorava muitos dias para o cheiro sair e o vômito secar. Vi algumas mulheres parirem ali mesmo e padecerem sobre os filhos que seriam jogados ao mar para o oceano abraçar e cuidar, não conseguia me mexer, mas conseguia escutar algumas mulheres da minha tribo sendo estupradas por aqueles que nos colocaram ali, rangiam feito cachorros e ofegavam feito ratos, era um povo nascido da maldade. Fazíamos nossas necessidades onde estávamos e o odor das fezes e urinas às vezes se tornava tão forte que alguns desmaiavam, outros desesperavam e enlouqueciam também.
Passamos 43 dias assim, havíamos conhecido o pior do ser humano, mas tínhamos mais a descobrir quando chegamos a costa do Brasil. Recebemos mais baldes de água e de novo as espumas voltaram para o nosso corpo. Muitos não conseguiam ficar em pé, diante da fraqueza e após tanto tempo deitado parece que as pernas se esqueceram para que servem ou morreram antes do corpo falecer. Eu consegui me levantar sem dificuldade e minha vitalidade logo conquistou a admiração dos nossos malfeitores, fui colocado como prêmio, virei mercadoria a ser vendida a preço caro. Enquanto as lágrimas escorriam em silêncio sobre a minha face me despedi de meu pai e sobre açoites fui sofrer num engenho de cana-de-açúcar na capitania de São Tomé.
A vida era dura e por anos a fio sofri o frio e o suor sangrento do meu corpo sob o sol a dilacerar minhas costas quando meu corpo ainda era de uma criança. Eu ficava com todos num lugar muito ruim, não quanto o navio, mas era sujo e sem janela para vento, às vezes ficávamos amarrados para não fugirmos, não raro as mulheres eram estupradas enquanto acorrentadas, mal dormiam e teriam de trabalhar cedo na lavoura, era a senzala. Quando fazíamos algo do desagrado dos malfeitores, nem mesmo entendíamos o que, e nossas unhas já eram arrancadas inteiras deixando a pele em carne viva, tão dolorosa a ponta de querermos tirar o dedo da mão. O mais comum era apanharmos acorrentados ao tronco enquanto um capataz açoitava nossa carne até dilacerar, e quando rasgava a nossa carne colocavam pimenta e sal, o que fazia a vontade de morrer ser maior. Um grande amigo que fiz no engenho morreu no tronco, o que deixou o capitão muito bravo, pois ele havia lhe custado muito dinheiro, havia ordenado para que sofresse como se não pudesse mais viver após não ter alcançado a meta da colheita por três dias seguidos, mas o capataz acabou matando, hoje sei que meu amigo estava doente e por isso não conseguira suprir as expectativas do malfeitor. Chamavam-me de criança velha, enquanto todos envelheciam meu corpo muito lento se desenvolvia, enquanto alguns morriam com a pele enrugada, eu nem mesmo esticava a minha pele para me tornar homem grande.
Gerações de malfeitores e de escravos se foram e surgiram, eu ainda era jovem e me destacava no recinto, minha história era espalhada por todos os cantos, alguns acreditavam, muitos não. Quanto mais o tempo passava, mais eu me inteirava da região que me escravizava, procurava sempre uma maneira de me livrar daquela condição, sabia que não poderia contar nem mesmo com os povos escravizados, pois eram de tribos distintas e instigados a entrar em conflito uns com os outros a fim de evitar os riscos de fuga para os malfeitores. Mas uma coisa é certa, todos odiavam os capatazes e malfeitores, quando os índios goitacás invadiram a fazenda para tomar de volta o que lhes era por direito, não foi preciso muitos olhares um para o outro para perceberem a oportunidade, agarramos com os dentes e atacamos tão ferozes quanto os índios cabeludos e bravios dessa região. Matei todos os que marcaram o meu coração com ódio e dor todo esse tempo e senti um enorme alívio quando olhavam assustados para mim enquanto triturava suas partes com a pequena faca na minha mão. Os índios não nos atacaram, perceberam que estávamos do seu lado e partiram sem nenhum cumprimento após a batalha terminar, apenas um olhar firme antes de se embrenharem pela mata. Quando olhei em volta percebi todos sem saber o que fazer, ainda se inteirando da novidade, estávamos livres, nossos capatazes estavam mortos e naquele momento todos se tornaram um povo só. Eu era o mais conhecido, pelo tempo e pela história, liderei o grupo para longe dali, caminhamos um dia inteiro até chegar às montanhas, onde haviam muitas cachoeiras e matas, era um lugar fantástico. No cume da montanha montamos um quilombo disfarçado em seus entornos com folhas de bananeiras e árvores grossas para que ninguém nos achasse, lá de cima conseguíamos ver toda a região que se estendia numa imensa planície. Enquanto o tempo passava observávamos os índios bravios atacando todos que entravam em seu território e vibrávamos com cada vitória, logo tropas e mais tropas chegaram e quando chegaram os sete capitães os índios foram dizimados.
Mais de 100 anos haviam se passado desde o dia em que eu pisara naquela terra e meu corpo ainda continuava jovem, era nítido que algo acontecia comigo, eu não era como todos, meu corpo insistia em resistir, enquanto o tempo passava a população no quilombo aumentava, separamos as tarefas muito bem definidas até mesmo em guerreiros para o dia que suspeitava precisarmos usar, vivíamos bem até esse dia chegar. Enquanto um dos rapazes do quilombo caçava, alguns traficantes o seguiram para o nosso quilombo, lutamos como guerreiros fortes que somos e os expulsamos, com seus corpos adubamos a terra. Mas outros voltaram e nosso quilombo não resistiu, fomos capturados e me levaram para longe, preso a uma carroça fui para uma fazenda no Rio de Janeiro. Enquanto olhavam para o meu corpo e os meus dentes, me davam 20 e poucos anos, mal sabiam eu já passara dos 150 anos e já havia acumulado mais conhecimentos que todos eles juntos.
Anos de sofrimento me atordoaram a vida novamente, mas nada daquilo era novidade para mim, havia regalias, beirando os 200 anos havia tanto conhecimento e histórias para encantar as famílias de malfeitores que mal fazia trabalho braçal, me ensinaram a ler e a escrever. Com isso pude me inteirar dos assuntos dos senhores de terra, uma terra distante chamada Inglaterra pressionava os senhores daqui para nos soltar, eu estava com 206 anos quando soube de uma tal lei Eusébio de Queirós que proibia que trouxessem o meu povo para serem escravizados por essas bandas, mas continuavam a chegar por tráfico clandestino talvez em condições até piores das que eu cheguei nesse lugar. Dali em diante as coisas começaram a mudar, quando eu completei 227 anos foi assinada a Lei do Ventre Livre, onde vi os primeiros filhos negros ganharam a liberdade e logo depois a princesa Isabel sancionou a Lei Aurea, libertando todos nós.
Assim como formávamos os quilombos ocupamos os morros próximos d’onde houvesse trabalho, a vida era dura mesmo assim, éramos desprezados, maltratados e explorados. Fiz minha morada no Morro da Providência, que ao receber os soldados carentes de seus soldos da guerra de Canudos apelidaram o morro de favela, com referência ao Morro da Favela em Canudos, explicando que favela era uma planta que cobria todo o morro daquela região, logo percebi que os morros com os ex-escravos e gente pobre forçadas a morar longe dos centros passaram a se chamar favela. Mas não arredei o pé, tentei de boa-fé fazer com que essa gente mané entendesse o ser humano que és, pura ilusão meu irmão, gerações e gerações eu aqui lutando para quebrar nossos grilhões, essa gente nasce náufraga de-mente.
Eu já tinha quase trezentos anos quando vi as máquinas chegarem e os povos do campo migrarem para os nossos morros, mais gente pobre quem vem enganado dar errado na vida, mais gente que nasce pra sofrer as benesses que os ricos a de ter, pergunto a não sei mais qual natureza, divindade ou esperança depois de ter sido tão ludibriado até mesmo em religião, fé e crença, por que me deixaste tanto tempo nesse inferno e nem me dá um sinal de que um dia me levará? Via o cinismo nos olhos maldosos olhando para as minhas gerações que se renovavam nos morros ruidosos de corações injustiçados, minhas mãos ásperas passavam aos mais novos todos os sofrimentos que eles ainda hão de enfrentar.
Quase 400 anos depois ainda estou aqui, e do alto desse morro pergunto a mim se um dia sairei daqui, a luta é eterna.
Mais um brilhante texto deste fantástico Fábio Bottrel, leitura daquelas que prende a gente que procura ir lendo devagar pra degustar melhor!
Aproveito o espaço para parabenizar o texto “Bento manda recado para o Açu”, do Aldir Sales, aliás, texto e foto. Mais um articulista com uma escrita elegante e que faz texto com alma. Sei que a função do Jornalista é informar corretamente, mas quando lemos um texto que ultrapassa a técnica e vem com o olhar humano de quem o escreve, é muito melhor.
Observo que a cada dia vemos a Folha da Manhã aprimorando a qualidade com bons jornalistas, alguns, com a arte da boa composição, da boa crônica. Meus sinceros parabéns!