O que é mais encantador em Elis é a sua perturbação. Não é a voz, não são as canções, não é a beleza. Tudo isso é apaixonante, sem discussão, mas a explosão Elis vem do tédio. Nitidamente vem do tédio. Se eu pudesse diria a ela “Minha musa, não existe tédio mais honesto que o seu”.
A cada performance uma explosão. Uma energia inigualável, inimitável. Elis arrebatou, não apenas pelo seu talento, mas por sua fome de vida, que é, inevitavelmente, também, fome de morte.
Ao assistir ao filme “Elis”, maravilhoso, diga-se de passagem, me veio à mente uma reflexão sobre os artistas. Como é penoso seguir sendo artista frente às demandas de estabilidade. E quando digo “estabilidade”, não restrinjo apenas à estabilidade financeira, que por si só já é um enorme problema de ordem prática, mas estendo a questão ao que diz respeito à estabilidade emocional, psíquica, amorosa, familiar etc.
A vida exige estabilidade, não há saúde que perdure acompanhada de insistente montanha-russa. Tantos bons artistas morreram precocemente. Todos com o mesmo perfil: enormes para si. Entendo “bons artistas” como aqueles que conseguem, com qualidade, transformar seus incômodos em obras catárticas, e fazer com que tanta gente sinta. Existem artistas que causam euforia apresentando uma “punheta de suas questões”, não é disso que se trata Elis. Os grandes artistas transformam a sua dor em uma dor de todos, porque tornam o outro sensível a ponto de perceber que, de fato, trata-se de uma dor de ser humano. É isso que sinto toda vez que ouço Elis. Sinto uma dor que é a dor de ser humano.
Ser humano dói. E aos artistas, que vivem de tornar esteticamente aceitável o lhe dói, dói ainda mais, porque é uma missão nunca saciada. Vive-se e morre-se um pouco a cada palco. Deixa-se ali carne e alma. O artista não se suporta sem essa doação e não dura muito tempo quando essa doação é total. É a montanha-russa: o prazer de quase morrer e assim perceber que se está vivo.
Para alguns a realidade não basta. Algumas pessoas saciam (temporariamente) o desejo de transcender o real fazendo arte, outros pulam de bungee jumping, outros com entorpecentes, ou com religiosidades, ou com tudo isso.
Temos poetas, temos profetas, temos drogados (vinho, poesia ou virtude, como diria Baudelaire). E temos Elis, que era tudo isso: a dor, o bungee jumping, a montanha-russa, a profecia, as drogas e a poesia. Elis, como artista de tudo, sentia demais. Não cabia em si. De tanta humanidade, virou Deus. E se foi.
“Embriagai-vos!
Deveis andar sempre embriagados. Tudo consiste nisso: eis a única questão. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos quebra as espáduas, vergando-vos para o chão, é preciso que vos embriagueis sem descanso.
Mas, com quê? Com vinho, poesia, virtude. Como quiserdes. Mas, embriagai-vos.
E si, alguma vez, nos degraus de um palácio, na verde relva de uma vala, na solidão morna de vosso quarto, despertardes com a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo que gene, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são. E o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio vos responderão:
— É a hora de vos embriagardes! Para não serdes escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos! Embriagai-vos sem cessar! Com vinho, poesia, virtude! Como quiserdes!”
Charles Baudelaire , Petits poémes en prose, 1869.
Nota: Trad. de Paulo de Oliveira (1937).
Um brinde à ELIS!
Viva!!!!Bravo!!!!Saúde!!!!