Bem aventurados os que guardaram sete mil amores

Estátua de Tom Jobim, em 03/12/14, quando era instalada à beira mar entre Ipanema e Arpoador (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)
Estátua de Tom Jobim, em 03/12/14, quando era instalada à beira mar entre Ipanema e Arpoador (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)

Ontem (08) completaram-se 22 anos da morte de Tom Jobim (1927/94). Lembro que, após receber a notícia, na redação da Folha, acelerei o dia de trabalho e, depois, o carro até o Pontal de Atafona. Ao chegar, bati no balcão do botequim para pedir de cara uma cachaça. E tomei, na sua sequência parideira, um porre homérico.

Na exata metade da minha vida, a saudade do garoto de 22 anos e gestos dramáticos, só não é maior do que a sentida por quem considero, ao lado de Cartola (1908/80) e Chico Buarque, o maior compositor da Música Popular Brasileira (MPB).

Como músico popular, certamente foi o maior entre os brasileiros. Já enquanto letrista, função que exercia menos, também pelo prazer generoso de compor em parceria, foi quem na MPB mais se aproximou da poesia literária de João Cabral de Melo Neto (1920/99). Quem nunca notou, que ouça novamente “Águas de Março”.

Maestro de formação erudita, discípulo dos mestres Heitor Villa-Lobos (1887/1959) e Radamés Gnattali (1906/88), conferiu a sofisticação harmônica do jazz à riqueza melódica e rítmica do samba. Nesta mistura, fundou a Bossa Nova, no final dos anos 1950. E soube aproveitar o sucesso internacional do novo estilo para pavimentar nos EUA uma carreira de igual sucesso.

Nos States, gravaria com Frank Sinatra (1915/98), em 1967, um disco de grande sucesso — também pela insistência de Jobim em ter na percussão um brasileiro, Dom Um Romão (1925/2005). Apesar da competência da orquestra de Sinatra, comandada por Claus Orgeman (1930/2016), Tom sabia que os gringos tinham “cintura dura” no batuque do samba.

O convite de Sinatra já faz parte da mitologia, como tantas outras histórias protagonizadas pelos dois mais conhecidos parceiros da MPB. Feito numa ligação telefônica ao antigo Bar Veloso, hoje “Garota de Ipanema”, onde os compositores da música Tom e Vinicius de Moraes (1913/80) bebiam e acharam inicialmente se tratar de um trote.

Enquanto pianista, Tom teve grande influência do toque dissonante do gênio do jazz Thelonius Monk (1917/82). Já na condição de compositor, foi considerado pela exigente crítica especializada dos EUA como um dos grandes do séc. 20, ao lado de monstros como George Guershwin (1898/1937), Cole Porter (1891/1964) e Irving Berlin (1888/1989).

O prestígio de Tom serviu para consolidar a carreira de outros mitos. Foi o caso de Elis Regina (1945/82), que a partir do disco “Elis & Tom”, de 1974, buscou e alcançou um novo status enquanto intérprete, a partir do sucesso de público e crítica, no Brasil e no mundo. Com ambos, a cabralina “Águas de Março” nunca foi tão derramada.

Seu disco que mais me marcou, talvez pela contemporaneidade do prazer de comprá-lo ainda inédito na saudosa Caiana do tio Dionísio Barbosa (1934/1994), foi “Passarim”. Nele, Jobim revelava duas letras para melodias que haviam feito grande sucesso em duas minisséries da Globo naqueles anos 1980.

Faixa título do disco, “Passarim” tivera sua versão instrumental, ainda sem a letra do próprio Tom, como tema da minissérie “O Tempo e o Vento” (1985). Era baseada na obra de Érico Veríssimo (1905/75). Já a música “Anos Dourados” (1986), que batizou a homônima série de TV, apresentaria só no disco a atrasada letra de Chico Buarque.

Em 1992, o maestro que se chateava quando não reconhecido como compositor de samba, ganhou sua maior homenagem: foi enredo e destaque do desfile da Mangueira. Um ano antes, gravara o disco “No Tom da Mangueira”, com músicas de bambas como Cartola, Noel Rosa (1910/37), Nelson Cavaquinho (1911/86), Carlos Cachaça (1902/99) e Jamelão (1913/2008).

Além dos mestres cuja música revolucionara, Tom convidou outro para traduzir seu sentimento, em palavras, sobre a sua música. Na última parceria com Chico, “Mandei subir o piano pra Mangueira” abre o disco e o coração de um sambista tão assumido, quanto acanhado:

“Mangueira/ Estou aqui na plataforma/ Da Estação Primeira/ O Morro veio me chamar/ De terno branco e chapéu de palha/ Vou me apresentar à minha nova parceira/ Já mandei subir o piano pra Mangueira// A minha música não é de levantar/ Poeira/ Mas pode entrar no barracão/ Onde a cabrocha pendura a saia/ No amanhecer da quarta-feira/ Mangueira/ Estação Primeira de Mangueira”.

Na faixa título de “Paratodos”, de 1993, na qual Chico reverencia a lembrança dos maiores cânones da MPB, ele canta ao fechamento da estrofe primeira e final: “Meu maestro soberano/ Foi Antonio Brasileiro”. Se, na última parceria de ambos, ele falou por Tom, falando deste ecoava uma nação.

No que há de particular, minha música preferida do maestro soberano sempre foi “Luiza”, composta para a novela “Brilhante”, exibida pela Globo em 1982. Mais que a personagem interpretada por Vera Fischer, no auge da beleza, Jobim depois revelaria sua verdadeira musa:

“Ana Luíza foi uma moça bonita que apareceu no Antonio’s, num dia que estava chovendo. Ela correu para aquela varandinha do Antonio’s. Era uma moça alta, grande, uma grande moça e uma moça grande. Estavam lá Chico Buarque, Carlinhos de Oliveira, uma quadrilha imensa. Chico começou a falar com aquele riso dele, aquelas palavras incríveis e depois a chuva passou e ela foi embora. E ficou o nome”.

Revelados como um brilhante que partiu a luz e a explodiu em sete cores, bem aventurados os que guardaram sete mil amores para dar somente a alguém.

 

 

 

 

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