De repente, um tiro. E outro. Pânico e ensurdecer. Confusão mental. Difícil explicar que em poucos segundos a vida muda e a morte vem. E vem em forma de cabeça estourada, miolos espalhados pelo automóvel conversível. Quem atirou? Por que atirou? O buraco aberto no crânio faz sangue e massa encefálica jorrarem. Alma arrebentada. O homem atingido é John. Ao seu lado, a esposa, Jacqueline, vestida de rosa e respingada de sangue,ela o ampara. Tenta estancar o sangue com as próprias mãos. Quem sabe, ele escapa. Não deu. Choro. Vazio e incerteza. Golpe do destino. Assassino.
Parece cena de filme. E é. Parece ficção. Não é. A morte ao vivo diante das câmeras de modo espetacular repercute mais de cinquenta anos depois. Por que rememoramos coisas tristes? Por que o roteiro traçado por nós teima em não ser cumprido pela vida autônoma? A vida às vezes parece tão injusta, embora já saibamos que a ironia seja uma de suas predileções. Uma mulher bela e elegante, rainha sem ser monarca, esposa de um líder democrata jovem e bonito, envolvidos em uma trama de conspiração e comoção. Kennedy ressuscita e morre há mais de cinco décadas. Morre para sempre, revive na memória coletiva até morrer outra vez a cada revisita ao passado. E em torno da cena macabra, uma mulher vestida de rosa.
John Fitzgerald Kennedy nunca foi santo (e qual presidente americano seria?). Nenhum governante do mundo nunca foi ou será santo. Nem o Papa. Mas, mesmo assim, os santificamos, os bendizemos, os beatificamos, os sagramos, os reverenciamos, os entronizamos quando queremos. É o jeitinho brasileiro ou o jeitinho internacional de reinventar o messias ou o mártir, aquele que se sacrificou e morreu por nós. E se não morreu por nós, que pelo menos fique registrado pelas câmeras, pela história e pela imprensa o quão injustiçado pode ser um político. Será mesmo possível isto ou não passa de mais um mito que teimamos crer, criar e recriar?
No dia em que Anthony Garotinho veio a Campos para ser ouvido pelo juiz Ralph Manhães sobre o processo que acusa o ex-governador do Rio de Janeiro de chefiar um esquema criminoso de compra de votos na cidade, eu estava no cinema assistindo ao filme Jackie (2016), estrelado pela sempre magnífica Natalie Portman e dirigido pelo chileno Pablo Larrain. Não me interessei tanto pelo depoimento do ex-governador, embora me informei do fato.
Vi as fotos e alguns vídeos na webda família Garotinho apoiando o patriarca neste momento no mínimo midiático, mas constrangedor (ou vice-versa). A ex-governadora e ex-prefeita Rosinha, linda como sempre, não estava vestida de rosa, mas usava óculos escuros à la Jackie O. Vale lembrar que esse “O” é de Onassis, sobrenome que Jacqueline Kennedy herdou do segundo marido, o armador grego e milionário Aristóleles Onassis. A família Garotinho e os amigos fizeram questão de um círculo de oração no Fórum, disseram. O mundo inteiro carece de reza e oração mesmo, pois o mundo jaz no maligno.
Voltemos à cena do crime em Dallas, depois sigamos voando para Washington para os preparativos do funeral suntuoso de John Kennedy, inspirado no mesmo roteiro do funeral de Abraham Lincoln, presidente que também morreu assassinado um século antes. Jackie quis que seu marido tivesse a mesma reverência, honraria e tratamento que Lincoln, considerado por especialistas em política americana, o maior presidente dos Estados Unidos de todos os tempos. Os dias se arrastam. É um momento de muita tristeza, mas também de muita beleza assistir aos dois espetáculos: o funeral de Kennedy em imagens de arquivo e a encenação do funeral na película. A personagem de Natalie Portman conta esse episódio da História com um olhar muito particular e sofrido, de uma viúva jovem que viveu uma espécie de conto de fadas enquanto esteve na Casa Branca.
A história narrada por Jackie não acrescenta muito além do que já sabemos. Porém, quando uma mulher resolve narrar sua versão dos fatos, isto sempre será relevante, atraente e comovente. O olhar feminino quase sempre é mais abrangente, embora nem sempre mulheres confessem suas crueldades e equívocos nas decisões que tomam junto aos maridos. Jackie Kennedy e Rosinha Garotinho são mocinhas ou vilãs diante de suas trajetórias e escolhas? Depende de quem as vê ou as julga.
O filme está aí para ser avaliado. As ações políticas da ex-prefeita também. Sem falar na biografia do nosso ex-prefeito e ex-governador Anthony Garotinho marcado pela cor rosa de sua casa na Lapa, na cadeira rosa que sua esposa ocupou na Prefeitura, no carro rosa que eles usavam, no microfone rosa por ela utilizado em comícios, nas roupas rosas que marcaram eventos, solenidades e campanhas eleitorais. Rosinha sempre atraiu votos para o marido e vice-versa. Mas, como sabemos, nem tudo é um mar de pétalas de rosas na vida deles, muito menosnas nossas vidas com o Brasil cada vez mais desmoralizado, afundado por políticos e por uma sociedade corrompida que temos.
A roupa que Jacqueline Kennedy usou naquele fatídico dia em Dallas, o emblemático tailleurrosa com botões e detalhes pretos, ficou ainda mais significativo com o sangue de seu marido espalhado pelo tecido. A violência pode não combinar absolutamente nada com a cor rosa, mas em algumas ocasiões fica difícil não prestar atenção nas cores do sofrimento, da vergonha, do medo, da injustiça e de uma tragédia que vira e mexe estamos vivendo e revivendo.