Manuela Cordeiro – Movimentos diários

 

Acorda e procura as primeiras luzes. O filme que deixou aceso, as luzes frias ainda por apagar do dia anterior, o celular pisca freneticamente recebendo os primeiros bits do horário comercial. Abre a janela da frente. Por sorte essa não tem chave, tem um só trinco e já consegue, sem tantos intermediários, enxergar o dia descortinando em vermelho e em canto. Do pássaro, do carrinho do vendedor de sorvete — interrompido pelo grito dos carros.
Começa a ronda na casa, a procura pelas chaves das portas, cada uma em um lugar previamente combinado com seu eu de ontem. Perturbado com os humores matinais, promete deixar tudo no mesmo lugar de hoje para amanhã. Mas, na realidade, sabe que a chave da porta de trás só pode estar em cima da ilha da cozinha, da geladeira ou em uma de suas várias cestarias de lembrança de queridos paradouros do passado. A chave da porta da frente também só tem outros dois cantos específicos para estar.
A porta que abre primeiro é a de trás. Não quer se abrir ao dia tão depressa. Vai ver as folhas caídas no chão, como o manjericão e a hortelã pimenta se comportam na luz tímida, o barulho dos vizinhos. Olha o céu e prevê o tempo do dia, mas se perde nos desenhos das nuvens.
Inicia o ritual do café da manhã ensaiado em perfeição — trocar as tomadas para a cafeteira e o liquidificador, ouvindo o tempo de terminar de passar o café, colocar as frutas do suco de hoje, ao mesmo tempo que liga o gás e inventa a tapioca do dia. Nisso, a chave do quarto já saiu da parte de dentro pra fora, junto com o computador, o livro que leu, as roupas para o dia de trabalho. Por um instante, tudo em harmonia e o maestro se dá ao luxo de apreciar o ritual em funcionamento. É interrompido pela espátula que cai e que ao buscar no chão, leva consigo o pano de prato e quase a garrafa de vidro. O susto do barulho interrompe a sequência do ato de fala e, no contexto da ação, a luz do dia e a do gás ficam por dois segundos turvas. Respira e consegue retomar o comando da polifonia. Porque já se aproxima o fim desse movimento da sinfonia. Nem ele gosta disso, mas sabe que deve preparar a próxima peça desse cenário, além de se regozijar ao ver a cena sempre pronta para novo ensaio.
O desfecho não é a simples ordem contrária do que foi feito anteriormente. Tem que ser sentido o tempo das coisas — o que esfria primeiro, enquanto lava o que já foi usado, preenche o finalizado. E novamente a porta de trás, a da frente, os esconderijos de sua mente para as chaves, a porta do quarto, a janela principal. Parado na porta da frente, novamente aberta, olha para mão que tilinta e se pergunta porque tantas chaves naquele molho — que incluem aquelas várias do trabalho, outras de casas de amigos.
Levanta o olhar e decifra o seu quebra-cabeça diário em um rápido olhar investigativo na sala e se pergunta — ficou tudo no seu lugar? E todo o dia sozinho responde, já que só ele domina o código de sua coreografia diária.

Salvar

Salvar

fb-share-icon0
Tweet 20
Pin Share20

Deixe um comentário