Guilherme Carvalhal — Através da Câmera de Vigilância

 

 

 

Todos os dias Gisele olhava para aquele homem através da câmera de vigilância. Ele chegava sempre à 8h30, de roupa social, tomava um café e comia um pão assistindo o noticiário matutino. Cada gesto expressava delicadeza, segurando a xícara com um leve aperto dos dedos ou cumprimentando gentilmente o balconista. Na sua mente, vislumbrava um antigo nobre e seus trejeitos.

À medida em que o observava, Gisele sentia crescer algo dentro de si. Parecia um amor platônico, uma vontade de abraçá-lo, de beijá-lo, de estar ao seu lado. Esse sentimento a levava a esquecer do mundo por esses minutos em que ele entrava na padaria, traçando sonhos diversos, estipulando como seria seu dia, qual sua profissão, desejando-lhe um bom trabalho fosse em um tribunal, em um escritório, em uma escola.

Já vestia seu uniforme e saía de casa com sua fisionomia na mente, como um ritual que precisava repetir cotidianamente. Chegou a cogitar em abordá-lo. Aproximar-se sorrateira, fingir esbarrar nele, arrumar um motivo qualquer para puxar assunto. Quem sabe ele se interessaria, perguntaria seu nome, pediria seu número de telefone. E disso um encontro, quem sabe? E assim, de seu posto de vigilância, ela sonhava, apenas sonhava.

Marcava com tamanho afinco sua presença que notou quando ele não apareceu. Uma gripe, imaginou, coisa da mudança abrupta do clima em março. Porém, após quatro dias seguintes sem ele dar as caras, resolveu perguntar para a caixa sobre aquele fulano de tal, negro, bastante sorridente, bem arrumado, que tomava café da manhã:

— Não soube? Foi atropelado e morreu na segunda-feira.

Gisele se desesperou. Acessou um blog de notícias locais e confirmou: ele atravessou a rua distraído e um carro acima do limite de velocidade o atingiu em cheio. Os socorristas o levaram ao hospital, mas chegou morto. Chamava-se Pedro, e Gisele lamentou descobrir com atraso seu nome.

Consultou a página das listas amarelas e descobriu um número residencial. Telefonou e uma mulher atendeu: seria mãe, filha, esposa? Inventou que o conhecia de tempos de colégio, soube do falecimento e gostaria de visitar o jazigo. Informaram-na do cemitério e orientaram sobre onde localizar a lápide.

No sábado logo cedo compareceu, ramalhete em mãos. Diante do túmulo, vislumbrou o nome forjado em bronze e o retrato em porcelana. Essa imagem lembrou-a dos seus movimentos vistos com carinho através da câmera de vigilância. Aguçou sua curiosidade sobre seu tom de voz e se o toque de seus dedos a infundiria com calma ou da deixaria agitada. Comprovadamente morto e enterrado, disso se certificava, seu amor eternamente impossível,e justamente por isso ela respirou aliviada. Não, o pânico do afastamento irreversível não a assolava, pelo contrário: perpetuar uma paixão que não se poderia consumir lhe proporcionou a maior satisfação de sua vida.

 

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