Carlos Alexandre de Azevedo Campos — A onda conservadora

 

 

 

O importante cientista político norte-americano Samuel Huntington, professor da Universidade de Harvard falecido em 2008, escreveu obra premiada na qual defendeu, no ano de 1991, o desenvolvimento de uma “terceira onda de democratização”, iniciada em 1974 com a “Revolução dos Cravos” em Portugal.[1] Essa onda alcançava os movimentos de rupturas de governos ditatoriais na América Latina (incluído o Brasil), na África, e a transição dos governos na Europa Central e do Leste com o refluxo do comunismo e a virada para a economia de mercado. Essa onda veio acompanhada de profundas reformas constitucionais marcadas pela implementação de Cartas de Direitos Fundamentais de caráter liberal e social e a instituição de cortes constitucionais, independentes e com fortes poderes para controlar a constitucionalidade dos atos legislativos e do Executivo.

Parece-me bastante interessante identificar movimentos de transformação política, social e jurídica de larga escala como “ondas”. Não que essas transformações possam ser consideradas, desde o momento em que apontadas, definitivamente assentadas, muito menos irreversíveis. No entanto, já merece o título de “onda” o movimento cuja amplitude inicial revela, considerados os fatos que o compõem, forte tendência de traços transformativos próprios, peculiares. Considerados os últimos acontecimentos políticos, sociais e jurídicos mundo afora, pode-se identificar hoje o desenvolvimento de uma “onda conservadora” – grande, de volume e intensidade forte.

No Brasil, muitos são os fatos que a revelam e suas possíveis explicações. A polarização política e social é manifesta. Reações populares contra o governo Dilma e o PT, envolvidos em escândalos de corrupção e na grave crise econômica nacional, pavimentaram o caminho para o impeachment da primeira. A reboque, a maior parte da população que apoiou a queda de Dilma voltou-se contra políticas de reconhecimento de direitos das minorias e de emancipação social, bandeiras típicas dos partidos de esquerda. Insatisfação com o quadro econômico e com a condução do governo fomentou um backlash não só político, mas também social. Penso que a ascensão política de uma figura como Jair Bolsonaro é o que melhor demonstra esse movimento. Bolsonaro não é causa, e sim efeito.

Os Estados Unidos sempre foram marcados pela polarização “liberais vs conservadores”: a guerra civil entre o Norte antiescravagista e o Sul escravagista, no século XIX; a disputa entre os defensores do liberalismo econômico e os partidários de Roosevelt e de seu programa New Deal de intervencionismo estatal no combate à crise econômica e na proteção aos menos favorecidos, na primeira metade do século XX; os embates entre os movimentos pelos direitos civis, especialmente os dos direitos dos negros e os defensores da law and order, partidários de Nixon e Reagan, na segunda metade do século XX. Neste século, para além de movimentos como o Tea Party, esse antagonismo produziu a sua consequência talvez mais extremada: a eleição de Donald Trump, defensor de posições ultraconservadoras e intolerantes.

A Europa, envolvida com os problemas da globalização, marcada por uma mistura irresistível de etnias, culturas e crenças religiosas, tem assistido uma evolução do ódio ao diferente, da intolerância religiosa e da xenofobia, em nível que não se verificava desde a implementação dos regimes totalitários que culminaram na eclosão da Segunda Grande Guerra. A ascensão de partidos e políticos de plataforma radical de direita, como Marine Le Pen da Frente Nacional na França, além do evento Brexit – o resultado do plesbicito no Reino Unido no sentido de sua saída da União Europeia – são sintomas dessa nova onda conservadora europeia.

Pois bem. Vem justamente da Europa o exemplo que eu gostaria, verdadeiramente, de destacar neste breve texto: a decisão do Tribunal Constitucional da Alemanha, de 17 de janeiro deste ano, por meio da qual a Corte proclamou a constitucionalidade da criação do Partido Nacional Democrático, que defende propostas antissemitas, racistas e xenófobas, enfim, ideias próprias do nazismo – a construção de uma comunidade popular etnicamente definida (Volksgemeinschaft), negando valores morais acolhidos e consagrados no princípio da dignidade da pessoa humana. O Tribunal concluiu que as ações do partido de extrema-direita não oferecem perigo atual, não havendo indícios concretos que o partido alcançará sucesso em sua empreitada.

Considerados os precedentes históricos do Tribunal Constitucional alemão, sempre voltados a afirmar que as ideias nazistas eram um passado absolutamente abandonado no país, tem-se que essa nova decisão é, sem dúvida, indicativa de importante e significativa mudança de perspectiva, ainda que não o seja, por ora, de paradigma.

Com efeito, o Tribunal Constitucional alemão destacou-se, historicamente, como instituição de tutela da dignidade da pessoa humana, da liberdade e de direitos sociais, em um ambiente social e doutrinário de absoluta desconfiança para com as instituições políticas e de condenação à passividade judicial da Era Weimar diante das atrocidades do nacional-socialismo. O constitucionalista e juiz do Tribunal Dieter Grimm advertiu que o ativismo judicial da Corte não decorreu de propósitos ambiciosos e deliberados de seus membros, mas das lições apreendidas com a experiência totalitária nazista, com os erros da constituição democrática de Weimar e do sólido objetivo de fazer valer a Lei Fundamental de 1949 para a vida política e social da Alemanha pós-Segunda Guerra.[2] O Tribunal se valia da máxima de Radbruch diante das atrocidades nazistas: “pode haver leis que são tão injustas e tão socialmente nocivas que sua validade, e mesmo o próprio caráter legal, devem-lhes ser negados.” A injustiça extrema não seria Direito.[3]

Foi com a missão de transmitir essa mensagem antinazista ao mundo, que o Tribunal Constitucional, na década de 50, declarou a inconstitucionalidade do então criado Partido Socialista do Reich, e o fez em razão das ideias e tendências neonazistas do partido. Para o Tribunal, as ideias e crenças professadas pelo partido, calcadas na superioridade de uma determinada raça, eram contra os valores da ordem constitucional livre e democrática inaugurada pela Constituição de 1949 e, principalmente, contra o princípio da dignidade da pessoa humana. Embora a liberdade de associação partidária seja elemento da própria democracia, o Tribunal fez entender que essa deve ser negada quando o seu exercício representar uma ameaça à própria democracia.

O que então fez o Tribunal mudar de perspectiva? Por que concluiu não ser mais necessário rechaçar de plano a criação de um partido neonazista? Pode-se aduzir que o fator tempo seja uma explicação: distante no tempo das atrocidades de Hitler, o Tribunal pode ter se sentido desobrigado a passar mensagens antinazistas por meio de suas decisões, e isso porque acredita que o perigo da volta ao nazismo não mais existe. Ora, se essa explicação é correta, então o Tribunal Constitucional vive em uma bolha, não enxergando a onda conservadora à sua volta. Ou – e aí reside o grande perigo – o bravo Tribunal já faz parte dessa onda. Torço que não! A hora é de vigília!

 

 

[1] HUNTINGTON, Samuel P. The Third Wave. Democratization in the Late Twentieth Century. Norman: University of Oklahoma Press, 1991.

 

[2] GRIMM, Dieter. Judicial Activism. In: BADINTER, Robert; BREYER, Stephen (Ed.). Judges in Contemporary Democracy. New York: New York University Press, 2004, p. 24.

 

[3] RADBRUCH, Gustav. Five Minutes of Legal Philosophy (1945). Oxford Journal of Legal Studies Vol. 26 (1), 2006, p. 14.

 

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