Marcelo Amoy — Carregando peso morto

 

 

 

Gosto muito de História – e recomendo seu estudo a todos, pois ajuda bastante a perceber o que é original; quem é farsante; o que vem de onde e nos trouxe até aqui; e, sobretudo, o que não se deve mais fazer. A História de nosso país, em particular (e em especial a nossa História recente), está cheia de informações que poderiam nos indicar rumos e ideias para um futuro melhor. No entanto, a ignorância, o mau caratismo e/ou o fundamentalismo sectário de algumas vozes continuam apregoando que obteremos resultado diferente se continuarmos cometendo os mesmos velhos e indesculpáveis erros.

No século XVIII, Edmund Burke foi original ao cunhar a frase: “Aqueles que não conhecem a história estão fadados a repeti-la.” No século XIX, Marx afirmou que “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. E no século XX, como era de seu feitio tomar para si o que pertencia a outrem, Che Guevara reescreveu como sua a frase de Burke, dizendo que “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”. Já aquela outra em que ele diz: “Fuzilamos, sim, e vamos continuar fuzilando!” é dele mesmo, ninguém pode negar – tá no vídeo do discurso dele na ONU falando sobre as maravilhas da revolução cubana que tantos defendem por aqui… [Essa é a parte da tragédia.]

Enfim, muitos anos depois de ter lido “1808”, de Laurentino Gomes, sobre as circunstâncias envolvendo a chegada da família real portuguesa ao Brasil, estou lendo “1822”, do mesmo autor, sobre os acontecimentos relativos à proclamação de nossa independência. Num determinado capítulo, alguns relatos sobre o povo brasileiro de então me chamaram a atenção – na verdade, me chocaram profundamente. É assustador constatar que certos traços que eu abomino nos brasileiros de hoje são anteriores à existência do próprio Brasil como nação independente. É desolador notar que muito do que eu percebo como origem de nosso atraso não passa de uma tradição consolidada.

“Em seus negócios, prevalece a astúcia mesquinha e velhaca (…); são pessoas inteiramente destituídas do sentimento de honra, não possuindo aquele senso geral de retidão que deve presidir toda e qualquer transação entre os homens”. Thomas Lindley, inglês, sobre os negociantes brasileiros na primeira década do séc. XIX. Sobre a “excessiva preguiça e indolência” das mulheres, o alemão Carl Seidler registrou: “Madame tem suas escravas – duas, três, seis ou oito, conforme o infeliz esposo abrir a bolsa. (…) Seria demais exigir que a senhora, fosse ela mulher de um simples vendeiro, se sirva ela mesma de um copo d’água, ainda que o jarro esteja junto dela sobre a mesa”. Sobre a preguiça masculina, o francês Saint-Hilaire atesta: “(…) no Brasil, todo mundo trabalha o menos possível. (…) O capitão-mor era obrigado a demarcar a quantidade de terra que cada um devia semear, colocando de vez em quando alguns preguiçosos na cadeia, a fim de intimidar os outros”. Assim foram descritos “tipos comuns”, populares e livres, da sociedade brasileira. Mas fica pior…

A elite econômica era grandemente iletrada e a elite social era formada por uma nobreza inflacionada pela troca de favores numa grande confusão entre o público e o privado, em que negócios de Estado e interesses pessoais se fundiam. [Quem destrincha essa confusão muito bem é Emília Viotti da Costa, em seu livro “O Império Brasileiro”, em que trata com profundidade do apadrinhamento e clientelismo vigentes então. Só então?] Quanto à nossa infeliz elite, disse o padre Feijó (antes mesmo de se tornar regente), que se tratava de uma aristocracia “fantástica”: à qual “faltava dinheiro, grandes ações, vasto saber e prestígio.” Deprimente. Pior ainda é estarmos nós aqui, 200 anos depois, fazendo (quase) tudo como dantes no quartel de Abrantes… Como esperar resultados diferentes?

Nossa elite continua confundindo negócios de Estado com interesses e vantagens pessoais – prova disso é a promiscuidade com que governantes e empresários se locupletam em detrimento do bem comum. Da elite de qualquer sociedade se espera o melhor exemplo, que seja guardiã dos mais altos valores, que seja sábia e realize as mais memoráveis ações – e, assim: que sirva de inspiração para todos. [A esquerda dá mais valor ao “sujeito histórico”, que no Brasil está quase sempre em coma – mas cada um que pense o que quiser.] Sempre ouvi que nossa elite era ruim porque “é de direita e só pensa no lucro” e que tudo mudaria com a esquerda no poder. Mudou, sim: pra muito pior. Nunca antes na história desse país fomos roubados em tamanha escala: seja em prejuízo financeiro, seja em oportunidades desperdiçadas, seja em danos institucionais. Ao instituir a roubalheira como método de governo e ao jogar brasileiros contra brasileiros enquanto mentia dizendo só visar o bem dos pobres, essa “nova” elite enchia os bolsos e se atirava a luxos de fazer a velha parecer amadora na arte de enganar o povo e distribuir péssimos exemplos. Na verdade, a nova e a velha se uniram na tarefa – agora “sob a benevolente liderança da esquerda altruísta”, é claro.

Talvez fosse a hora, então, da população inverter o quadro e dar exemplos de baixo. Bom seria se a preguiça, a indolência moral e o desejo por assistencialismo deixassem… mas não deixam. E nem são só eles que atrapalham: de cá de baixo, na sociedade, quantos não desejam subir os degraus que os separaram da elite pra poderem chegar lá e… roubar também? Mas até pra subir essa escada dá trabalho… Maldito capitalismo, que inventou esse negócio de mobilidade social!!! Agora eu vou ser obrigado a dar duro pra subir na vida??? Tão bom ficar aqui deitado na rede, com a mão estendida, esperando pingar uma bolsa família ou algum outro tipo de auxílio qualquer… vivendo de sombra e água fresca, sem nenhuma preocupação a não ser com a hora da sesta e vigiar as conquistas do vizinho para invejá-las e criar rancores como cãibras.

A persistência de ideias tão atrasadas no Brasil demonstra que a busca por igualdade assumiu uma perspectiva perversa: não se trata de batalhar pelo direito de cada um ter acesso a algo maior e melhor, mas de prender uma bola de ferro aos pés de quem pretende progredir para lhe tolher essa possibilidade – assim ninguém se sente inferiorizado, saca? E fica todo mundo irmão na mediocridade geral. Aqui, o conceito de igualdade não embute esperança; traduz uma inveja que devora ressentimento e arrota desprezo pelo sucesso alheio como se ele fosse uma ofensa pessoal – combinação fora de Tom.

E segue o samba de uma nota só – a do ranço do atraso – atravessando na avenida Brasil como um réquiem mal cantado à beira de uma cova já de olho em 2018. Incentivada por sedizentes 400 intelectuais [dentre os quais há estudantes secundaristas cuja vibrante intelectualidade se infere por fazerem parte de um coletivo socialista qualquer], uma eventual candidatura LuLLa traz atrelada a si a infalível receita oportunista/populista para o abismo já testada pela gerenta. Já vazaram que o possível candidato promete aumentar o bolsa família, torrar reservas internacionais do país, expandir gastos públicos e incentivar o consumo interno. Difícil imaginar maior irresponsabilidade. Já deu errado no passado recente; sendo que, dessa vez, ele ainda pretende gastar a única reserva que nos sobrou. O que faz alguém acreditar que agora vai dar certo é uma incógnita insuperável no mundo da lógica – e nem preciso lembrar que o boom das commodities já acabou e que a economia global é, hoje, bem menos pujante do que era no começo do primeiro mandato do dito cujo. Quantas famílias ainda podem ou quererão se enforcar em dívidas novamente?

Mas o pensamento da esquerda flerta com o messianismo e embute um certo tipo de realismo fantástico utópico – aquela coisa de “salvador da pátria” e “pai dos pobres” que “faz milagre” e distribui benesses como padres, bênçãos. Ao mesmo tempo em que gera seguidores que parecem membros de uma seita fundamentalista cega (gente que escreve em rede social que tem ódio de Moro e quer cuspir na cara dele (!!!) – só porque ele vai julgar LuLLa, “o santo intocável”), produz a falsidade que rende voto exatamente porque se encaixa direitinho no desejo atávico do brasileiro de fugir de responsabilidades; de procurar atalho pra tudo; de desejar ter quem lhe proteja e proveja; e de delegar preguiçosamente o que for possível a quem quer que seja pra poder continuar na rede à sombra sem se preocupar com nada – nem com a falta de razoabilidade ou a inexequibilidade do que lhe prometem. Um bando de Alices num país sem maravilhas. O fato do camarada político/messias parecer ter roubado e deixado roubar de todas as maneiras possíveis (verificaremos a veracidade dessas acusações em breve) se torna secundário: seja porque fariam igual caso pudessem; seja porque acham certo roubar o “Estado” se ele for “burguês”; seja porque pensam que eLLe “rouba, mas faz”; ou seja porque ele parece ser “gente como a gente” e fala até errado como a gente – mesmo sendo aquele tipo de gente que come a gente sem permissão e ainda espera que agradeçamos. [Essa é a parte da farsa.] E olhe que tem gente que agradece e pede bis – são casos pra Ciência estudar.

É tudo tão surreal que parece que o Brasil não foi descoberto por Cabral, mas pintado por Dali. A candidatura do maior de todos os suspeitos parece piada – certamente de mau gosto. Na real, tal acinte parece factóide inventado pra ver se se constrói uma narrativa capaz de afastar a cadeia – vai ver é só isso mesmo: um barro que se joga na parede pra ver se cola. Apesar dos muitos que se esforçam pra abandonar essa lama cultural de malandragem em que nosso futuro se atola, o traço típico da nacionalidade continua sendo o conto do vigário; a ignorância total; a falta de memória mesmo quando se tem estudo; uma elite tão desprovida de qualidades quanto irresponsável – e uma sociedade que só não tem preguiça de invejar o progresso alheio; que desconfia da liberdade; e que entende a igualdade como um freio, não como estímulo.

E assim nossa História se repete em tragédia e farsa – não mais em sequência, mas simultaneamente. Uma história de ressentimento e velhacaria condenada a ser a mesma há 200 anos – mesmo quando travestida de novidade.

 

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Este post tem 2 comentários

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Caro Cesar Peixoto,

      O texto é do Marcelo Amoy, não meu.

      Abç e grato pela participação!

      Aluysio

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