Ofício
Os cientistas estão intrigados com os urubus.
Que mistério encerra este pássaro que não canta?
Senhor dos monturos,
do que sobra dos mortos.
Ceia o que mundo expele
e no entanto seu aparelho digestivo
é igual ao de todos os bichos de pena,
ao do pintassilgo,
igual até ao do sabiá laranjeira
mais bonito quando canta
do que quando voa.
O que a Ciência sabe
é que está nas alturas
o segredo que o torna único
entre as aves da terra.
Depois que come a carne roxa,
a córnea cega, o corpo putrefato
que o crime escondeu
ele sobe a mais de mil metros
e lá faz a digestão.
Quando desce
vem limpo como o menino
que vai à primeira comunhão:
corpo e alma cheirando à lavanda.
João Tatê, caboclo de Barra do Itabapoana,
que caminha pelas veredas da doideira,
ensina: há um átimo de segundo
antes da morte fechar sobre nós suas asas,
seu hálito de enxofre
— é quando todo homem se arrepende e se salva.
O que os urubus comem é
carne dos convertidos.
Impossível de digerir é o pecado.
Dezembro de 1996
(Do livro “Arquitetura da Manhã”)