Ricardo André Vasconcelos — Salsichas, leis e o banzo do Brasil

 

Otto Von Bismarck. A ele atribui-se também outra pérola que permanece atual como se fosse dita hoje: “Com leis ruins e funcionários bons ainda é possível governar. Mas com funcionários ruins, as melhores leis não servem para nada”

Prefiro não citar autores que não li ao menos um livro ou conheça minimamente o contexto da citação, mas a frase atribuída a Bismarck é tão perfeita para o Brasil atual, que justifica a exceção. Fontes do Google informam que Otto Von Bismarck foi um dos maiores estadistas da Europa do século XIX, protagonista maior da unificação alemã e que entrou para a história como o “chanceler de ferro” e, claro, pelas frases que cultivam contemporaneidade há dois séculos. Há variações para frase que abre esse texto, mas sem perder a atualidade nem o justificado receio que causa: “os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis”.

Sendo a salsicha um dos símbolos da cultura gastronômica germânica, imagina-se que os métodos de industrialização da iguaria tenham sido aperfeiçoados, da mesma forma que o processo legislativo. Não é à toa que a Alemanha é a maior potência e pilar que sustenta (ainda) o que conhecemos hoje como União Europeia.

Cá do lado de baixo do Equador, as salsichas e leis continuam tirando o sono. Para ser justo, o processamento de proteína animal, cujas mazelas foram reveladas pela espetaculosa operação “carne fraca”, preocupa menos que as tramas diabólicas urdidas nos gabinetes dos três poderes em Brasília quando gestam as leis. A investigação das relações espúrias entre fiscais do Ministério da Agricultura, deputados e empresas do setor revelou mais uma faceta da corrupção no Brasil, mas longe de generalizar a percepção de Bismarck para tudo que o país produz na área de carnes e embutidos.

No que se refere às leis, no entanto, parece um mal sem cura. É um despudor de fazer “corar frade de pedra”, com diz o provérbio português. Para fugir dos iminentes processos criminais na esteira da delação da Odebrecht, deputados e senadores articulam mudanças na legislação eleitoral de modo a facilitar-lhes a reeleição em 2018 e, assim, manter o manto da impunidade travestida de foro por prerrogativa de função, o famigerado “foro privilegiado”. Sacaram do armário o voto em lista fechada, que seria, aliás, um sistema ideal num país que tem partidos com identidade e fidelidade partidária que funcione. Nunca onde existem 35 partidos, a maioria quitandas para abocanhar porções do Fundo Partidário e mercadejar tempo no rádio e TV.

Sobre o foro privilegiado, é bom lembrar, que sua origem visa preservar a autonomia e garantia do desempenho das funções seja no Legislativo, Executivo ou Judiciário. É um remédio constitucional para evitar que um Poder seja subjugado por outro e funcionem independentes e harmônicos como manda o artigo 2º da Constituição da República. Por isso, os deputados e senadores são invioláveis por suas opiniões, o que é fundamental para a democracia. Assim como os juízes, que têm os escudos constitucionais de vitaliciedade e não podem ser removidos, como forma de garantir a independência em seus julgamentos. No entanto, é preciso delimitar o número de autoridades com foro especial e que sejam restritos aos atos cometidos somente no exercício da função. O que a Constituição quer proteger é o exercício da função e não o sujeito que a exerce.

O retrocesso legal em marcha é recente e revela um Brasil com banzo. Banzo era como os escravos descreviam a nostalgia, a saudade da África, que a muitos levava à morte. Hoje parece que o Brasil é que está com saudade do atraso, da falta de liberdade, da precarização do trabalho, da fragilidade dos direitos trabalhistas e previdenciários e até da doutrina delfiniana de “crescer o bolo para reparti-lo depois”. Não é isso que a emenda constitucional que congelou gastos públicos por 20 anos fez? E a lei que liberou geral as terceirizações (inclusive no Serviço Público)? E as reformas da previdência e trabalhista?

O Brasil está andando para trás. Depois da Constituição de 1988 houve avanços legislativos antes impensáveis: acabou-se com o voto secreto em decisões de cassação de mandato de parlamentares e o STF já pode processar deputado ou senador sem autorização da respectiva Casa. Essa garantia constitucional, aliás, foi considerada o estopim para a edição do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, que institucionalizou a ditadura militar no país.

Dias antes das comemorações do Sete de Setembro, o deputado do MDB fluminense, Márcio Moreira Alves, em despretensioso discurso na Câmara dos Deputados, exortou as moças a não dançarem com seus namorados militares em protesto contra o regime. O governo tentou processar o deputado, mas a Câmara, num raro momento de enfrentamento, negou autorização. Era o que a linha dura queria para fechar o regime. Portanto, autorização para processar deputado era justificável num regime de exceção e mero corporativismo numa democracia plena. Garantias constitucionais, repito, são para o pleno exercício da função pública e não escudo de patifarias.

Portanto, é bom não se deixar enganar com os temperos e ervas que se colocam nas salsichas para disfarçar-lhes o mau cheiro e nem pelos discursos de salvadores da pátria que saem fácil, fácil das bocas dos patifes, porque, segundo o mesmo Bismarck, “nunca se mente tanto como antes das eleições, durante uma guerra e depois de uma caçada”.

 

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