Ao completar minha terceira contribuição para o Opiniões, resolvi refletir sobre a pesquisa e a produção de conhecimento no Brasil. As últimas semanas, as últimas listas, os últimos cortes e prisões… tudo faísca e a República respira delações. Atmosfera pesada que nos exige “nervos de aço”.
Como educadora, passei o domingo imaginando um texto no qual contasse a historia do primeiro pescador que entrevistei em Campos, na praça São Salvador. Lembro-me bem daquele dia. Um ato em favor dos royalties do petróleo, em uma praça esvaziada. Todos os entrevistados, fora um vendedor de picolé e um homem que corria para o barbeiro, prestavam algum serviço à Prefeitura.
De lá para cá já se passaram anos suficientes para acessar uma camada mais profunda da cidade e compreender um pouco mais de sua composição e de suas memórias. Naqueles tempos, Eike Batista ainda não tinha sido preso e pensava em transformar São João da Barra na “Veneza brasileira”. E para cá se dirigiam levas de trabalhadores, técnicos, comerciantes e até mesmo funcionários públicos. Todos inebriados pela imagem do grande empreendedor brasileiro que rodava seu imposto de renda em São Paulo. O Rio de Janeiro não tinha os zeros necessários para o tamanho de sua contribuição.
Nas últimas semanas, muitas confissões colaboram na construção de um quadro tragicômico. Mas se aos inocentes é dado o direito ao choro, o que dizer da juventude de Campos, de Pádua, de Macaé, de Rio das Ostras? Que teve seu futuro subtraído com o rombo criado nas contas do Estado. O que dizer aos filhos de pedreiros ou pequenos agricultores, que viram na possibilidade de qualificação, a saída para a falta de recursos em suas cidades?
Posso testemunhar, em tom confessional, que nada parte mais o coração do que vivenciar a frustração de uma criança ou de um jovem diante da impossibilidade de permanecer na escola. Creio que todos irão identificar essa experiência. Se existe algum consenso em nossa fragmentada sociedade, é quanto ao valor da educação.
Se esse acordo está posto, o que temos feito para assegurar a continuidade destes projetos? E o que eles significam concretamente? Não creio que seja útil para o argumento central deste texto, uma defesa genérica da educação. E por quê? Porque não vivemos condições de igualdade nas quais a meritocracia possa ser a variável de construção do acesso à educação. Sabemos que a formação de um médico ou de um arquiteto tem um custo altíssimo. E que a formação de um médico e um arquiteto com potencialidade crítica, dificilmente pode acontecer fora da universidade pública.
A razão é simples: educar para atuação na promoção de uma sociedade mais justa exige muito mais do que um currículo, ferramentas de ponta, ou professores com pós-doutorado em Berlim. Educar para formação de um aluno pesquisador, de alunas pesquisadoras, exige um ambiente, ou seja, um nicho ecológico no qual possam perceber a fantástica experiência da construção do conhecimento. Exige a dosagem entre o pragmatismo necessário ao avanço de disciplinas e o aprendizado nos laboratórios, nos saraus, nas assembleias estudantis, nas formaturas, nos prêmios recebidos, nos estágios em Guarus ou nos trabalhos de campo no hospital João Vianna.
Essa estranha forma comunitária produz um certo “espírito”. É esta disposição para conhecer que nos une a Universidade de Al-Azhar no Cairo, à Universidade de Modena, na Itália, Lérida na Espanha, Cracóvia, na Polónia e centenas de universidades mundo afora. No dia 22 de abril, será realizada em todo mundo a Marcha pela Ciência. No Brasil, mais de 15 cidades realizarão a Marcha. Belo Horizonte, Diamantina, Natal, Petrolina, Rio de Janeiro, São Paulo, Petrópolis e Porto Alegre marcharão junto com outras cidades para demonstrar a importância da ciência como bem comum de toda humanidade. O conhecimento não pode ser comprado e não deve ser privilégio de alguns grupos, como já o foi no passado.
Que a educação muda a vida, repete-se aos quatros ventos nos canais de televisão e propagandas políticas. Mas a educação que muda a vida só pode acontecer aliada à produção científica. Desde o ensino fundamental é necessário que se explique às crianças como as cores são formadas, porque a maioria dos morcegos dorme de cabeça para baixo, porque o corpo muda intensamente a partir de certa idade. E isto pode ser feito com experimentos muito simples. A curiosidade é intensa nas crianças. O que encantou a plateia mirim que lotou o Centro de Convenções de Uenf em março, foram os experimentos e a possibilidade de ver a ciência “acontecendo”
Sim, as universidades são espaços privilegiados de formação cidadã e temos na cidade de Campos, uma universidade de excelência reconhecida nacionalmente. Em meu primeiro dia nas aulas para professoras do ensino fundamental, vejo expressões acanhadas e o medo de “estar na Uenf”. Mas quando mostramos que suas biografias são material bruto para pensar educação e que sua sala de aula é o principal lócus de aplicação do conhecimento, percebemos como a transformação acontece. Antes tímidas, passam a fazer uso da palavra, a criar verdadeiro interesse sobre países, fatos, sobre o lugar da mulher em nossa sociedade. Passam a questionar a divisão das tarefas domésticas e a não aceitar a política de compadrio existente em suas escolas.
Ver a primeira formatura do curso de alunas do Parfor (Plano Nacional de Formação de professores da Educação Básica) foi certamente marcante. Eu havia orientado uma aluna que defendeu uma bela monografia sobre educação no campo. E sabia dos desafios para sua permanência no curso. O mesmo se dá com alunos tímidos em um primeiro semestre de biologia ou ciências sociais que hoje estão desenvolvendo projetos de pesquisa junto a Prefeitura, colaborando na construção da memória em estágios no Arquivo Municipal ou pesquisando para melhoria da produção de alimentos.
Essa é a universidade viva, atuante, que recebeu como apoio durante sua greve mais de 14 mil assinaturas — em sua maioria, de moradores da cidade de Campos dos Goytacazes. Foram encontros com uma população que literalmente vestiu a camiseta de Darcy nas esquinas da Pelinca ou em frente a Caixa Econômica. O artigo 205 da Constituição Federal de 88 define que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
Manter a Uenf aberta é uma forma de resistência e acima de tudo uma aposta de que o futuro de Campos pode ser muito mais luminoso. Mais humano e justo. E essa defesa deve acontecer em nossa prática cotidiana, na ampliação da luta por uma educação feita de curiosidade, emancipação, crítica. Esta foi a universidade sonhada por Darcy e abraçada pelo Norte Fluminense.
Qyuerida Luciane, parabéns, mais uma vez! Belo, sensível, preciso, forte, denso, político, seu texto, como sempre!
Resister junto com a UENF é uma ação política coletiva que se soma à resistência por um Brasil humano, criativo, inclusivo, nacional, democrático e civilizatório.
Parabéns a você, ao blog!
Estamos juntos.
Ontem, ao passar parte do dia com os acampados do Açu, com vários alunos e ex-alunos da UENF, senti na pele isso que você diz. A UFF também estava lá, desde diretores a professores e alunos.
Acho que o NF tem jeito!
Na luta, sempre!