Fabio Bottrel — As lágrimas da Uenf: educação não é privilégio

 

Problema Social – Seu Jorge:

 

 

 

 

Abaporu (1928), óleo sobre tela de Tarsila do Amaral

 

 

Como disse Jorge Amado: “Mestre inconteste no que se refere à educação, Anísio Teixeira foi um brasileiro raro”, o qual esse texto leva título homônimo a uma de suas obras, a expressar em outrora o pensamento que ricochetearia no presente, à parte dos números:

“Sou contra a educação como processo exclusivo de formação de uma elite, mantendo a grande maioria da população em estado de analfabetismo e ignorância. (…) Choca-me ver o desbarato dos recursos públicos para educação, dispensados em subvenções de toda natureza a atividades educacionais, sem nexo nem ordem, puramente paternalistas ou francamente eleitoreiras.” — Anísio Teixeira.

Homem admirado por Darcy Ribeiro, o qual levou a frente suas ideias e a criação da Uenf, me veio à mente ao ler tal frase, que pensa um político ante uma sociedade que não passe antes pelo crivo da educação de qualidade? Certamente a construção de um grande cabresto abstrato, transformando projetos sociais não como paliativos para um objetivo — necessários numa sociedade extremamente desequilibrada como a nossa — mas o objetivo para um voto, fazendo da política, como o pensamento de Nietzsche, um “eterno retorno”, perpetuando o devir da resistência ao desenvolvimento humano.

Além, vejo a cobrança das anuidades em faculdades públicas se encaixar na frase de Anísio Teixeira, “sou contra a educação como processo exclusivo de formação de uma elite” se gratuita, maior parte da comunidade que contorna a Uenf não caminha sobre suas gramas, e sabemos que o motivo vai muito além dessa questão. Como essa universidade fora pensada por Darcy Ribeiro, um local de dissolução das classes, resta-nos a pergunta, mediante a aparente impermeabilidade da sociedade acadêmica, agrega ou desagrega? Excetuando deste argumento o projeto de lei do senado nº 782, de 2015, que previa o pagamento de anuidades apenas a estudante que aferissem renda familiar acima de 30 salários mínimos, imagino que as medidas seriam impostas como um parâmetro de renda, mas foge à realidade brasileira. Ainda além, vejo tal opção de alternativa à crise como perigosa, pois se torna um hábito cultural, e sabe-se lá após a porta aberta, daqui a alguns anos, em qual altura estará essa questão com o passo já dado para a privatização do ensino público. Já não basta pagarmos uma das maiores cargas tributárias do mundo, devemos aumentar o pagamento ou mudar os administradores e reformar esse sistema político?

Diante de questão tão delicada como a crise na Uenf, e a dimensão de sua importância para o desenvolvimento regional, fechá-la é como cortar o pescoço de Campos, o corpo trabalha enquanto a mente vaga, vaga — para o declínio do próprio corpo. Para me inteirar mais sobre o assunto encontrei uma amiga de infância, a quem não ouvia a voz desde então, lembranças boas que esse texto já me proporcionou antes mesmo de ser escrito. Thaís Rigueti tem toda a sua vida jovem e adulta formada pela Uenf, fruto das vozes intelectuais que ecoam seus ambientes acadêmicos, cresceu sobre os ombros gigantes da Universidade Estadual Norte Fluminense e se tornou uma mulher de sucesso, terminando seu doutorado, como já predizia seus impávidos traços na infância. Ao perguntar a quem sente na pele as consequências da crise, Thaís se propôs a falar em palavras escritas, a angústia de ver quem a criou profissionalmente sucumbir à incompetência e má-fé de nossos políticos:

“Ingressei na Uenf em 2006, movida pelo interesse profissional e por querer ter ensino de qualidade sem pagar por isso. Esta era a realidade projetada nas mídias e que condizia com o papel desempenhado pela universidade em nossa região, idealizado por Darcy Ribeiro. Mesmo sem estar envolvida com a situação política vivida pela universidade neste período e sem saber quais eram as necessidades do corpo docente e discente, encontrei o que procurava: universidade com boa infraestrutura, salas de aula lotadas, professores preparados e motivados. No mesmo ano me candidatei a uma bolsa de apoio acadêmico oferecida pela universidade, a qual complementava minha renda e me ajudava na adaptação em minha nova cidade. As bolsas de apoio, iniciação científica, dentre outras eram/são ofertadas através de processo seletivo e muitos dos meus colegas da universidade eram contemplados.

No mesmo ano, em Julho, participei da inauguração do Hospital veterinário (o maior da América Latina), projetado por Oscar Niemeyer. Não havia dúvidas de que era um momento de ascensão da Universidade no âmbito tanto regional, quanto nacional. Nesta mesma época comecei a me interessar pela situação política vivida pela universidade e as necessidades do corpo discente.

No decorrer do meu curso de graduação em Ciências Biológicas, participei de manifestações promovidas pelo DCE (Diretório Central de Estudantes), e dentre as reivindicações estavam a criação de um refeitório (bandejão), oferecimento de auxílio moradia/alojamento e reajuste no valor das bolsas ofertadas. Apesar da luta por mais direitos, não havia dúvidas de que a universidade caminhava bem. A Uenf era uma das instituições pioneiras na oferta de cursos de graduação a distância, em 2008 recebeu o Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos e em 2009 recebia pela segunda vez, o Prêmio Destaque do Ano na Iniciação Científica conferido pela CNPq.

Em 2010 colei grau e me tornava bacharel em ciências biológicas, sem dúvidas o sentimento era de gratidão. Gratidão por ter a oportunidade de viver a Uenf e ser parte dela, por ter ensino de qualidade e crescer com ela. A partir de 2010 (Até o presente), comecei a trabalhar com pesquisa e fiz/faço parte do programa de Pós-Graduação em Biociências e Biotecnologia e neste atual contexto posso vivenciar a realidade política da Universidade com um novo olhar (acho, inclusive, menos romantizado).

A aproximação com o corpo docente e técnico administrativo, além do discente (no qual faço parte), promoveu uma visão mais crítica sobre as políticas de gestão desenvolvidas pela universidade e as políticas públicas adotadas pelo governo do nosso estado e país.  Em 2010 vivenciei a primeira greve (desde de que havia entrado na universidade), organizada pelos servidores, a reivindicação era pela reposição salarial. Os sucessivos governos que passaram pelo nosso estado e pelos diversos municípios fluminenses nas duas últimas décadas haviam destruído as condições para o exercício de uma educação pública de qualidade. Toda a comunidade aderiu a greve, “Uenf na rua, Cabral a culpa é sua” (gritei bastante esta frase na época do governo Cabral). Neste governo a insatisfação da comunidade acadêmica crescia, e foram muitas greves (não me recordo exatamente quantas foram).

Hoje, trabalhando com pesquisa e sendo bolsista de doutorado pela Faperj sinto na pele as consequências da crise. Bolsas atrasadas e sem reajuste; falta de recursos (reagentes, materiais) e infraestrutura para o desenvolvimento de pesquisa; calendário acadêmico atrasado devido às greves; refeitório fechado por falta de recursos; insegurança por não haver vigias; professores e técnicos desmotivados por atraso de salários (que já estão defasados).

A atual situação da Uenf é um reflexo de má gestão pública e isso me entristece profundamente. Como Universidade, ela desempenha um papel fundamental em nossa região, ela agrega pesquisa, ensino e extensão ou seja: ela gera conhecimento, possui ensino de qualidade e torna isso acessível para toda população. A pesquisa desenvolvida nos laboratórios por discentes e renomados docentes (100% doutores) produzem resultados que promovem desenvolvimento regional e contribuem para o conhecimento cientifico a nível nacional e internacional. De acordo com os Indicadores de Qualidade da Educação Superior 2015, divulgados em março deste ano, a Uenf é a 13ª melhor universidade do Brasil e a segunda do Estado do Rio.

Assim como uma célula do ponto de vista biológico, a universidade precisa sobreviver. É necessário que todos os compartimentos estejam funcionando bem para que sejam realizadas suas funções. A energia para produzir vem dos investimentos públicos que precisam ser bem administrados. Na situação atual, estamos criando energia por reciclagem, mas isso não consegue se manter por muito tempo sem que a célula/universidade morra.

Para sair da crise, precisamos de mais apoio. Precisamos que toda a população abrace a causa e entenda a importância da universidade para a nossa região. Precisamos entender o complexo contexto político em que esta situação está inserida e a partir daí buscar soluções. Como o próprio Darcy Ribeiro dizia: só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. Então sem dúvida, frente a esta situação, precisamos nos indignar” — Thaís Rigueti

 

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