Ontem, 07 de maio, foi o dia do segundo turno das eleições presidenciais francesas. Eu já devo saber do resultado neste instante em que você me lê, ainda que não vá comentá-lo aqui como fato consumado porque estou fora do Brasil desde o final do mês passado e este texto foi deixado pronto antes de minha viagem. Embora as facilidades de comunicação via internet hoje em dia me facultassem escrevê-lo ontem mesmo, não escolhi essa alternativa até porque não é do resultado da eleição francesa que mais quero tratar, mas do que certos movimentos significam. No caso, a relação dos países (nacionalidades) com a Europa unificada e o projeto de união que ela representa.
Em sua monumental obra, Hobsbawn atribui a origem das grandes guerras mundiais do século XX a dois fatores principais: o capitalismo e o nacionalismo. Atrevo-me a discordar (em boa parte) – até porque, mesmo não tendo as décadas de estudo e leitura que ele tinha, não sou marxista e posso imaginar que exista bem mais no mundo do que essa “lente” consiga enxergar. No entanto, um certo grau de reconhecimento de que o nacionalismo foi um dos fatores geradores das tensões que levaram aos conflitos que marcaram o século XX com suas duas terríveis guerras está na gênese do projeto de uma Europa unificada – unida por sua cultura cristã, pela escolha por democracia, pelo livre mercado e por suas tradições humanitárias (apesar dos arranhões). Acho que esse é um projeto que vale a pena ser preservado.
Os britânicos, por pequena maioria, acharam que não e deram início ao Brexit. Isso me lembra aquela piada em que, durante uma terrível tempestade, toda a comunicação entre a Grã-Bretanha e o restante da Europa foi cortada. Ao saber disso, um inglês teria dito: “Pobre Europa, está isolada.” O futuro dirá se o Reino Unido terá feito uma boa coisa. O argumento a favor da saída foi o nacionalismo, resumido na frase: “Não queremos que Bruxelas nos diga o que fazer”. A eleição de Trump nos EUA foi um pouco do mesmo em essência: querer seu país grande de novo não quer dizer, apenas, um desejo de recuperar uma grandeza (real e/ou imaginária) passada, mas o de separar “isto daquilo”. Eu não sou contra que se tenha claro onde um país começa e outro termina, mas sou de centro o suficiente politicamente para desconfiar sempre de posicionamentos que reputo radicais.
A Europa passa por um dilema crucial em relação à imigração. Mesmo sem ser europeu, é algo que me preocupa especialmente agora que o Brasil está por sancionar uma lei de imigração que eu considero absurdamente frouxa. Na Europa, o “Espaço Schengen” trouxe uma mobilidade inédita de pessoas que levam suas mentes com suas forças de trabalho, formações acadêmicas e potencial para inovações livremente para todos os lugares, gerando mais desenvolvimento, realização individual e benefício social. Sim, bandidos também podem circular livremente – terroristas idem. Então, para evitar que os terroristas venham, vamos fechar as fronteiras correndo e cercear a liberdade das pessoas e o progresso da sociedade? É esse o projeto político que andam defendendo por aí? É isso que os terroristas querem; devemos ajudá-los a conseguir? Imaginem, grosseiramente, que alguém machuque a mão e, para evitar que o corpo sofra com uma infecção, corra a decepá-la. Esqueceu que há antibióticos… cortou a mão fora e nunca mais vai viver como antes – ainda que sem (aquela) infecção. Haverá de seguir cortando partes nas próximas ameaças?
Pra mim, os discursos isolacionistas têm todos cheiro de populismo (quando não de algo mais podre). Falam direto às camadas “mais pobres” (“menos antenadas”) do mundo rico: aquelas que se acham as vítimas do enriquecimento dos países periféricos graças à globalização como se o capitalismo não gerasse riqueza e fosse tudo um jogo de soma zero, em que é preciso tirar daqui pra colocar ali. Não é! É possível e desejável que cresçamos juntos. Se a fábrica fechou em Detroit, lamento… bora buscar um curso de atualização e um novo emprego no setor de serviços, por exemplo, ou num outro ramo vocacionalmente mais afim? Bruxelas regulamentou o tamanho das cenouras e as suas aí de Essex não se adaptam? Plante tomates ou repolhos! Xi… olha a guilhotina se aproximando do meu pescoço por eu dizer a grande novidade de que as coisas não ficarão para sempre como eram e que só não muda o que já morreu… [É comum chamarem de insensibilidade o que não passa de realismo.]
O mercado de capitais europeu ficou eufórico com a vitória de Macron no primeiro turno francês porque ele é pró-Europa (portanto, menos isolacionista). Pessoalmente, mesmo que muitas críticas tenham fundamento, eu também apoio a União Europeia. Porque não aprimorá-la, resolvendo os atritos, ao invés de simplesmente cortar a mão fora? A grandeza de certas construções institucionais humanas está exatamente no fato de que elas podem mudar dentro de si mesmas, sem precisarem ser destruídas e substituídas por outra ordem. Assim são a democracia, o capitalismo e tantos organismos multilaterais como a UE: eles estão sempre se recriando e evoluindo junto com a sociedade; poder reformar-se sem se destruir é parte de sua dinâmica. O problema humanitário da imigração é sério e sensível. Eu não acho que esteja certo simplesmente abrir as fronteiras e encher a Europa de gente que pode estar disposta a detonar exatamente o que a UE mais quer preservar: seus valores culturais. Tem que haver algum tipo de triagem eficiente – eu não sei como fazer. Mas simplesmente fechar os olhos para o desespero de milhões de pessoas seria negar os valores humanitários europeus – cristãos, em primeiro lugar. Querem deixar clara a “inferioridade humanística” da cultura muçulmana? Então não se igualem.
Fora isso, vamos a um exercício mental? O Reino Unido já saiu da UE. Se a França sair… o pilar restante será a Alemanha. Quanto tempo vai levar pra que alguém comece a gritar que o que o Kaiser Wilhelm não conseguiu na I Guerra nem Hitler na II será obtido por Merkel no século seguinte: a dominação da Europa por uma Alemanha forte e hegemônica? Loucura, loucura – mas de médico e louco cada um tem um pouco, não é? Melhor é não rasgar dinheiro nem decepar a mão! Recomendo poupar em euros e tomar antibióticos – tem uns de última geração que são excelentes! E se for preciso, manda um rivotril também. 😉
Interessante notar, contudo – e esse tem sido um desejo meu faz tempo! – que a visão democrática e liberal de mundo parece estar virando a mesa da esquerda. Mesmo que um tanto exagerada aqui e ali (nada que não possa ser redimensionado, espero), a tendência tem sido a aposentadoria de ideias que adoram se chamar de progressistas, mas que deixaram a desejar no quesito… progresso (mormente o econômico). Isso não significa que eu ache tudo o que a esquerda apresentou como dispensável. Muito pelo contrário: acho que estão abertas as portas para aproveitarmos o que presta do que já foi proposto de todo os lados e construirmos uma síntese aproveitável. Pra mim, o ideal seria o cenário em que as liberdades individuais fossem as mais abrangentes possível, numa economia de práticas conservadoras. Como disse antes, ainda não sei se o Macron ganhou na França, mas se ganhar resumirá bem essa minha percepção: a de que a maioria das pessoas ainda acredita que se pode garantir progresso econômico e liberdade individual num mundo cooperativo, sem isolacionismo e/ou nacionalismo obtusos, sem belicismo desnecessário (mas também sem ingenuidades) e sem perder as características culturais de cada rincão mesmo com a abolição de fronteiras geográficas, políticas, econômicas, laborais, etc. O argumento de que o “globalismo” acabará por destruir a essência do que prezamos não me parece acertado; melhor dizendo: não vejo o futuro acontecendo assim, porque não vejo incompatibilidade entre a cooperação internacional, mesmo com o ônus da perda de parte da soberania regulatória, e a manutenção da cultura local/nacional. Há coisas que acrescentam; não apenas substituem.
Pra mim, chega de assassinatos em Sarajevo a honras a serem vingadas pela força (ou pelo nojo). A superioridade do Ocidente reside exatamente na combinação de progresso material com valores humanitários. A expansão muçulmana para o Ocidente se deteve nas muralhas de Viena em 1529 e se hoje parece (querer) ir além… cabe a Europa, UNIDA, estabelecer os limites e dizer: “Alto lá, Allah!”. Contraditoriamente, quase 400 anos depois, foi uma ordem de Viena que desencadeou a I Guerra: sinal de que um mesmo lugar pode ser eficiente para se defender do que vem de fora enquanto cria o germe de sua destruição por dentro – espero que a Europa tenha aprendido a lição e não a desperdice recriando nacionalismos (que podem até se manifestar de forma diferente do passado, sem expansionismos desta vez, mas que me cheiram igualmente ultrapassados). Nesse meio tempo, Viena foi o lugar que abrigou a genialidade de Bethoven, Mozart, Haydn e Strauss e que sediou alguns dos eventos mais importantes da História, como aquele Congresso, em 1814/1815, em que, unidas, as potências de então determinaram a reorganização da Europa pós-Napoleão – com reflexos aqui no Brasil nas ordens das Cortes Portuguesas determinando o retorno da família real para Portugal. Vejam só: uma decisão europeia afetando o futuro de nossa vida, aqui, em nosso país… Terá esta lição sido esquecida?
Obviamente, outras pessoas podem achar diferente, mas pra mim, mesmo dois séculos depois, já de longe terminada a era do colonialismo europeu, a influência deste continente ainda é real e grande porque a Europa ainda é um farol para todo o mundo – que dirá pra mim… Quero vê-la unida e forte. É pra Europa que sempre olho, pra onde prefiro ir e onde me encanto a cada esquina ou paisagem – como nesses últimos dias, em que caminho às margens do Danúbio na outrora capital imperial dos Habsburgo.
Vive l’union européenne!
Lebendig die Europäische Union!