Dois anos após seu desaparecimento, onde hoje habita o Neivaldo?

 

Em 28 de julho de 2012, Neivaldo observa seu bar ser tomado pelas águas nas quais ele mesmo desapareceria, três anos depois (Foto: Mariana Ricci – Folha da Manhã)

 

 

Por Aluysio Abreu Barbosa

 

Poet de vie (“poeta de vida”). É a expressão criada pelos franceses para definir quem, mais do que escrever versos, é capaz de converter a própria vida em poesia. Entre outras tantas classificações, é o que se pode dizer não só dos 54 anos de vida do comerciante, publicitário e “filósofo” autodidata Neivaldo Paes Soares, como da sua suposta morte na foz do rio Paraíba do Sul. Na próxima quarta-feira, dia 21, se completarão exatos dois anos daquele domingo de junho de 2015, quando ele foi visto pela última sobre as águas do rio que gerou e corta a Planície Goitacá.

No cair de uma noite fria, Neivaldo saiu sozinho do cais do Restaurante do Ricardinho, tradicional estabelecimento de Atafona, ao lado da Igreja Nossa Senhora da Penha, e iniciou a travessia do Paraíba em sua canoa a motor, rumo à ilha do Peçanha, onde residia e costumava receber os amigos. Dali, onde o rio deságua no Oceano Atlântico, ele nunca mais seria visto. Apesar das várias buscas da Marinha, Bombeiros, Polícia e amigos, com mergulhadores e cães farejadores, seu corpo nunca foi encontrado.

Campista, Neivaldo atuou em várias funções em sua cidade natal, inclusive na Folha da Manhã, nos anos 1990, onde costumava colaborar com artigos, geralmente criticando o sistema manicomial brasileiro, e atuou como publicitário. Também tentou a sorte na política, sendo candidato a vereador pelo PT e depois pelo PFL, evidenciando a “metamorfose ambulante” dos seus pensamentos e atos. Mas se sua figura alta e esguia já era bastante conhecida pelo jeitão hiperbólico, questionador e um tanto excêntrico, foi em Atafona que Neivaldo passaria a ser conhecido como “Bambu”, se tornando referência para sanjoanenses, campistas e quaisquer passantes atraídos pelas belezas naturais da foz do Paraíba.

Era 2007 quando ele ocupou a antiga garagem de barcos da família Aquino, no Pontal de Atafona, e retirou sozinho toda a areia que já tomava a sólida construção, para fazer do local seu bar e casa. No verão de 2010, apesar do acesso difícil pela areia e a ausência de luz elétrica, o Bar do Bambu atingiria seu auge de popularidade, quando foi palco para a peça “Pontal”, dirigida por Antonio Roberto de Góis Cavalcanti, o Kapi (1955/2015). Em apresentações que reuniram entre 80 a 120 espectadores por noite, sob a luz bruxuleante da fogueira, lamparinas e lampiões, os poemas sobre Atafona de Aluysio Abreu Barbosa, Artur Gomes, Adriana Medeiros e do próprio Kapi eram contados como causos de pescadores, na interpretação dos atores Yve Carvalho e Sidney Navarro, além de Artur.

No último poema do espetáculo, “Manchete de jornal”, Yve se virava para o dono do bar e declamava em voz alta os versos de Adriana: “Ainda freamos o mar/ Com o nosso tesão molhado./ Ainda sentimos frio lá na curva,/ Onde hoje habita o Neivaldo”. E, em cada apresentação, essa era a senha para que a face do homenageado se abrisse em riso e seus olhos lacrimejassem, sempre como se fosse a primeira vez. Sensibilidade à parte, o sucesso inesperado de público, elevando à décima potência as vendas do bar, foi a oportunidade para que seu proprietário fizesse um pé de meia.

Depois de ter sido o anfitrião orgulhoso daquele que talvez tenha sido o último grande momento do Pontal, Neivaldo permaneceria lá até julho de 2012, quando o avanço do mar atingiu seu bar e residência. Como já tinha comprado uma casa na Ilha do Peçanha, ele atravessou suas coisas pelo Paraíba e passou a residir lá, onde o isolamento era quebrado pela manutenção do hábito de receber amigos e curiosos pelo bucolismo do local, além do jeito extravagante, mas sempre acolhedor, do seu novo habitante. Qualquer “lamparão de bico” que aparecesse era recebido com as “iguarias inigualáveis” de quem aprendeu a misturar tinta marrom de rio e verde de mar para escrever poesia com sua própria vida.

Ao desaparecer, Neivaldo encarnou mais do que qualquer um o destino das referências humanas na foz do Paraíba.

 

 

Depoimentos:

Elvio Paes Soares

 

É aquela velha história: caiu no esquecimento. A Marinha não fez mais nada para saber o que aconteceu. Na época do desaparecimento, com a cobertura da Folha em cima, fizemos tudo que poderia ser feito. Mas é uma sensação horrível não achar e poder enterrar o corpo do seu irmão. Foi ainda pior para o nosso pai, que morreu de infarto um mês e meio depois de Neivaldo sumir. Tenho certeza que não ter a resposta sobre o que aconteceu com o próprio filho contribuiu muito para isso. Seu coração não aguentou. E o de que pai aguentaria? As duas mortes seguidas desestruturam muito a nossa família. Minha mãe não passa um dia sem se lamentar. Ela sempre liga para mim para saber se acharam alguma coisa.

(Elvio Paes Soares, comerciante e irmão de Neivaldo)

 

 

Auxiliadora Cassiano

 

“O dia amanheceu, os pássaros cantam! Mova-se, abra a casa e espera a luz da vida, deixando o sol entrar”.

(Neivaldo)

Continuo me movendo no tempo; na vida; “degustando iguarias inigualáveis”; em sabores e paisagens que você rinha o prazer que todos sentissem.

O mar continua vindo, numa mudança infinita. Hoje o pesadelo do seu desaparecimento/morte deu lugar a uma infinita saudade que traz para a vida essa “existência humana” que você tanto respeitava.

(Auxiliadora Cassiano, bancária)

 

 

Guilerme Bousquet

 

Eu conheci Neivaldo, o “Bambu”, no final dos anos 80, na mesma época em que ele se candidatou ao cargo de vereador, depois o encontrava esporadicamente em Campos ou Atafona. Já fui atendido por ele no UTI, bar de comida árabe de propriedade da família “Knifis”, em Atafona, e no Bar do Estranho, em Campos.

Mas foi quando ele transformou uma garagem de barcos em bar no Pontal, que o conheci melhor e passei a ir frequentemente para apreciar o espetáculo da natureza, no encontro do rio Paraíba com o mar. Lá, no Pontal, Bambu sempre me recebia com aquele sorriso estampado no rosto e abria as portas do seu cantinho para eu entrar, colocando o velho fogão à minha disposição para preparar as famosas peixadas e galinha ao molho pardo. Mas a fúria do mar levou o seu cantinho para as profundezas e ele teve que se mudar para uma casinha na Ilha do Pessanha. Nessa aconchegante ilha, eu, minha família e amigos, passamos a frequentar e continuar a apreciar a natureza do outro lado do Paraíba.

Mas, em meados de 2015, recebi a fatídica notícia dando conta de que Bambu estava sumido há uns quatro dias. De imediato procurei saber o que havia acontecido e acionei alguns parceiros de profissão para irmos até a ilha, local onde ele morava. Chegando lá, ao entrar no pequeno quarto, que sempre ficava arrumado e impecável, me deparei com livros no chão, lençóis retorcidos na cama e travesseiros espalhados. Ao olhar no varal do lado de fora do casebre, constatei que a mesma sunga azul que falaram que ele vestia no último dia em que foi visto, estava pendurada junto com outras roupas. Nesse momento, tive a certeza que Bambu não havia morrido afogado…

A partir daí, comecei a fazer contato com parceiros do Corpo de Bombeiros, altamente qualificados, para iniciarmos as buscas pelo corpo. No primeiro dia de buscas acompanhei os mergulhadores do CBMERJ para tentar localizar o corpo em torno das Ilhas do Peçanha e da Convivência, mas não lograram êxito. Poucos dias depois acompanhei novas buscas, dessa vez nas terras das ilhas com o auxílio de cães farejadores que vieram de Magé somente para essa empreitada. Caminhamos horas pelas ilhas e, mais uma vez, nem sinal do corpo de meu amigo Bambu.

Agora restaram a saudade e a lembrança dos excelentes papos, sempre degustando as “iguarias”, como ele mesmo gostava de falar, apreciando a natureza de Atafona.

(Guilherme Bousquet, inspetor de Polícia Civil)

 

 

Luiz Henrique Araújo

 

Conheci Neivaldo em 1980, num show de rock no Automóvel Club Fluminense de Campos. Através dessa e tantas outras identificações, nossa amizade se consolidou na loucura, na crítica aos padrões vigentes, n psicologia e na filosofia, apesar das minhas limitações. Bebemos muito Nietzsche, Kafka, Carlos Castaneda e tantas outras maravilhas nos bares da Pelinca.

Em 1988, selamos nossa amizade, como fazem alguns índios, com uma troca de camisa num campeonato de surfe no Farol de São Thomé. A camisa que ficou comigo desintegrou 20 anos depois, na foz do rio Paraíba, surfando. Local onde nossa amizade chegaria ao ápice da maturidade, crescimento e harmonia, pois nos aceitávamos com todos os defeitos e virtudes.

Nos últimos anos, nos encontrávamos sempre no meio do Paraíba: ele de canoa, eu de barco a remo. E ríamos porque a vida nos tirou a Pelinca. E, em troca, nos deu inteiramente o Paraíba. E ali, naquele mesmo lugar, eu me sinto absolutamente vivo! E ali, naquele mesmo lugar, ele “morreu”…

“Herdei” sua canoa, sua casa na Ilha do Peçanha, 20 dos seus mais de mil livros e, acima de tudo, uma vida inteira de alegria, de loucura, de lucidez e a certeza de que tudo continua valendo a pena.

Vai, meu amigo, pois só os loucos, os artistas e os anjos atravessam a existência do “Portal de Atafona”.

(Luiz Henrique Araújo, fiscal de Meio Ambiente)

 

 

Filipe Estefan

 

Lembro-me de Neivaldo nos idos de 80/90, quando, em conversas informais, discorria sobre humanismo e política, com percepções profundas sobre a vida e a história do mundo e do Brasil. Exercia a profissão de publicitário, era autodidata, erudito e desfrutava de bons relacionamentos em todas as camadas sociais. Ainda naquele período, me lembro de Neivaldo fazendo campanha como candidato a vereador em Campos, com discursos progressistas e voltados para o homem e a natureza.

Passaram-se anos sem encontrar Neivaldo, até que, em um verão em Atafona, fui acompanhado de um amigo em comum, Carlos Américo, visitar o bar de Neivaldo no Pontal de Atafona, justamente ali no encontro do rio Paraíba do sul e o Oceano Atlântico. Com o avanço impiedoso do mar, e a destruição do bar, Neivaldo se mudou e foi morar na ilha do Peçanha, onde remontou seu bar, e, onde por inúmeras vezes para lá naveguei em companhia de esposa e amigos para beber uma cerveja gelada e desfrutar das iguarias por ele servidas. Bem como para um bate papo descontraído ao sabor do ventos uivantes e da bela paisagem da ilha.

Grande abraço amigo! Que Deus lhe conceda a Paz eterna!

(Filipe Estefan, procurador de São João da Barra)

 

 

Pedro Henrique Motta

 

Lembro quando fui chamado pelo amigo Cyro Poppe para conhecer um bar em Atafona, o bar do Neivaldo. Em um lugar fascinante, com uma energia fora do comum, fomos recebidos por um anfitrião de risada extravagante com uma cachacinha na mão, descalço, fritando um peixe, receptivo, carismático, com o riso fácil; um malucão. Difícil ser indiferente à sua irreverência e espontaneidade.

Voltei tantas vezes que logo fizemos amizade, acredito que cada um que retornava tinha um lado Neivaldo, desprendido, à beira do rio, descalço, e ali se libertava nas rodas de violão dando boas risadas, declamando poesia, filosofando à luz do lampião, virando noites vendo a lua, tocando mais uma canção.

Essa época marcou a minha vida, tanto que hoje junto com o amigo Guilherme Lenga, que também participou dessa fase, abrimos o Eremita Bar, cujo nome, artigos de decoração e pratos do cardápio, têm influencia direta do nosso amigo que um dia morou numa ilha.

Dias antes de seu desaparecimento, avisei que lhe faria uma visita. Ele disse que me esperaria com um peixe. Não deu tempo. Ele se foi, desapareceu como uma lenda, “a lenda do Pontal”. Saudade é a palavra dessa época que não volta mais, da nossa amizade, de tudo que o mar engoliu e ficou pra trás.

(Pedro Henrique Motta, empresário)

 

 

José Cunha Filho

 

Ah, o Neivaldo! Não tinha o hábito de frequentar o seu bar em terras além do Pontal, tinha não. Visitei, várias vezes, o antigo botequim que agora é ponto de parada de sereias e outros viventes do mar. Da última vez que o vi, alegre estava e disputamos três partidas de xadrez enquanto degustávamos uma cervejinha.

Aonde você foi, menino levado?

A gente se conhecia desde os idos em que ele frequentava a Folha da Manhã, sempre prestativo, sem função definida, mas querido por todos, sempre sorridente e jovial. Gente boa, gente boa! Bom caráter nato! Agora, saiu para passear e não voltou. O seu barco a motor, leso de saudades, ficou a rodopiar a meio caminho entre o Pontal e Convivência.

Como pião sem guia, girando sem parar, sem mão segura no leme que o conduzisse aos portos da aurora.

Saiu a navegar o Neivaldo, mal saída a noite e cadê?

Nós, amigos e amigas, torcemos para que retorne de sua viagem por mares nunca dantes navegados como queria o Camões que recitava por desfastio, noites de plenilúnio.

É possível, contudo, que o guardião da Árvore Que Anda esteja adormecido nos braços de Iemanjá, que a encantada elege os seus preferidos, mantém em sua corte aventureiros e gente do bem.

Quem sabe ainda nos encontremos, Neivaldo, para mover aquela torre e deixar órfão o rei?

(José Cunha Filho, jornalista e escritor)

 

 

Diva Abreu Barbosa

 

Como me esquecer de você, Neivaldo, com sua postura ereta, suas divagações, seu buscar incessante, desde o tempo em que trabalhava na Folha da Manhã, vendendo anúncios, morando na casa em Cantagalo, onde está sediado o transmissor da Rádio Continental, com sua horta plantada naquele espaço, que quase acabou com nossos radiais, tirando a rádio do ar, no afã de arar a terra?

E, por final, na sua metáfora como abrigo, o seu bar, o “Pontal” de Kapi e Aluysio, as estrelas como céu e o Paraíba como colchão, até desaparecer em suas águas — ou não…

Mistérios de Neivaldo e sua saga…

Sem Ponto Final!

(Diva Abreu Barbosa, professora e empresária)

 

 

Aristides Soffitai

 

Neivaldo entrou na minha vida assim como saiu: do nada. Ele tinha uma grande qualidade. Conseguia os mais mais reservados documentos. Com eles, podíamos trabalhar com provas na nossa luta ambiental. Mas ele também era mestre em me causar problemas. Um dia, um marido enfurecido me ligou reclamando que Neivaldo cortejava sua mulher. Perguntei-lhe o que eu tinha a ver com o caso. Ele me pediu que eu o controlasse. Neivaldo era incontrolável. Em outra ocasião, ele envolveu o nome do Centro Norte Fluminense para a Conservação da Natureza num encontro regional sobre a liberação da maconha. Ecologista já não tinha boa reputação, ainda mais se envolvendo com drogas.

Ele acabou sendo afastado da nossa associação por vontade da maioria. Fui seu advogado de defesa invocando a importância do seu caráter de espião. De nada adiantou. Neivaldo sumiu. Anos depois, veio a notícia que ele havia sumido da vida. Seu corpo nunca foi encontrado.

(Aristides Soffiati, historiador, escritor e ambientalista)

 

 

Página 5 da ediçao de hoje (18) da Folha

 

 

Publicado hoje (18) na Folha da Manhã

 

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Este post tem 3 comentários

  1. Jane Pacheco

    Que maravilha poder ler/sentir depoimentos tão naturais e tão cheios de amor pelo Neivaldo! Eu o conheci através de minha sobrinha Fernanda Huguenin que levou-me até seu bar, ali em Atafona, numa tarde de sábado. Apenas uma vez conversamos, bebericamos, e a tarde já era uma explosão de vida que surpreendeu-me pelo encantamento das palavras entre todos. Leio a Folha diariamente pela Internet pois não moro em Campos. Acompanhei todo o movimento pela sua busca. Mas, a Dona Diva deu a linha: “até desaparecer em suas águas – ou não… Sem ponto final!”.

  2. Maria Amelia Pinto Boynard

    Conheci Neivaldo em minhas caminhadas pelo Pontal, quando parava para fotografar “A Árvore que Anda”, que vivia nas imediações do seu bar/casa.Certo dia, encheu-me de perguntas sobre a Árvore, que eu conhecia desde nova. Falei-lhe de minha tristeza por encontrá-la com o tronco queimado e ele me disse que havia pessoas fazendo churrasco dentro dele. Como? E ninguém zela por essa árvore, lenda do Pontal? falei. E ele: eu tomo conta dela, pode deixar. Então, Neivaldo Paes, fique aqui perto dela que eu o nomeio “Guardião da Árvore que Anda” no Pontal de Atafona.E o fotografei! De calça e camisa social, pois iria à cidade… Era meu amigo.

  3. Vanessa Nascimento

    Parabéns Aluysio! Muito bom poder ler nos dias de hoje, um texto com tanta sensibilidade e com tanto cuidado nas palavras. Lembro de quando o seu Neivaldo desapareceu, participei da cobertura, na produção e embora eu não o conhecesse, me comovi como todos os sanjoanenses e campistas.

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