Ocinei Trindade — Caetano, a polícia, a paternidade e o país

 

 

 

Quis o destino que Caetano Veloso chegasse aos 75 anos de idade, belo, saudável, poeta, pensador crítico, incômodo e incomodado neste agosto de 2017. Pai de três filhos, o cantor e compositor baiano não deve estar contente com a falência do Brasil, nem do estado do Rio de Janeiro, onde reside, cercado por violência e incertezas. Imagino que ele e qualquer cidadão consciente questionem a truculência, a corrupção e a vulnerabilidade de policiais fluminenses que também são vítimas de criminosos. Só este ano, quase 100 peemes morreram no Rio. Se não é guerra, o que é? Temos sido alvos de inescrupulosos políticos, ladrões ou traficantes, e está difícil distinguir quem são os bandidos mais perigosos deste país. Pena deste momento baixo-astral brasileiro.

 

Enquanto os homens exercem seus podres poderes, motos e fuscas avançam os sinais vermelhos e perdem os verdes, somos uns boçais…

 

O número de policiais assassinados ou mortos em combate ao crime organizado é noticiado pela imprensa semanalmente. São estatísticas que acabam sendo banalizadas, juntamente com outros números de vítimas da violência desenfreada que toma conta do Rio de Janeiro, e de muitos outros lugares deste enorme e injusto país. Trata-se de uma luta que parece não ter fim. Impossível vencer bandidos bem armados, destemidos e impunes. Acostumamo-nos com as notícias ruins durante as refeições, além de criminosos nas esquinas, nos governos e nos parlamentos. Não me conformo.

 

…em caras de presidentes, em grandes beijos de amor, em dentes, em pernas, bandeiras, bomba e Brigitte Bardot, o sol nas bancas de revistas me enche de alegria e preguiça, quem lê tanta notícia? Eu vou, por que não?…

 

Tornamo-nos espectadores de uma guerra suja e injusta (como a maioria das guerras). Entre homens e mulheres que morrem alvos de balas perdidas e direcionadas, estão também policiais militares com salários ruins e atrasados, além de condições inadequadas de trabalho. Eles e milhares de outros servidores públicos estaduais passam pelo mesmo perrengue. Os militares que morreram este ano no Rio não eram só policiais, mas também eram filhos, maridos e pais que se foram em vão, infelizmente. Mártires e vítimas de assassinatos não fazem falta para a maioria da sociedade, pois são facilmente esquecidos. A escalada de violência e desigualdade social só aumentam por aqui com uma certa indiferença. Reverter o quadro é possível? Caetano Veloso já viu quase tudo nesses seus 75 anos de vida, inclusive, esperança por dias melhores no futuro que já virou passado. Quem crê nisso?

 

Quem é ateu e viu milagres como eu, sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar, nem cansam de esperar, e o coração que é soberano e que é senhor não cabe na escravidão, não cabe no seu não, não cabe em si de tanto sim, é pura dança e sexo e glória, e paira para além da história…

 

O país que se destaca entre os mais ricos do mundo, o Brasil em pleno século XXI, se mantém no topo das contradições, e na lista dos mais miseráveis do planeta. Exagero? Quem se informa apenas pelos telejornais da TV Globo até pode ficar inconformado, mas nem todas as desgraças e injustiças cabem nas páginas dos jornais, sites de notícias ou nas postagens surdas, roucas, mal-escritas, destoadas ou desafinadas que entopem as linhas do tempo das redes sociais. Indignação virou sinônimo de post and likes. Eu sempre me pergunto if I like or if I don´t like. O Brasil quando comparado ao Haiti, infelizmente, se mostra em grandes desvantagens. E (in)justamente na terra onde se considera levar vantagem em tudo. Rezemos pelo Brasil. Educar se torna cada dia mais desafiador.

 

…E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina, 111 presos, mas presos são quase todos pretos ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres, e pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos…pense no Haiti, reze pelo Haiti, o Haiti é aqui, o Haiti não é aqui…

 

Não sei quanto tempo dura uma crise econômica, nem a crise de baixa auto-estima que o Brasil foi acometido nos últimos anos que se arrastam. Sei que nada é para sempre e que o “pra sempre” sempre acaba, mas não todo dia. A gente que tem vocação para a felicidade fica logo exaurido quando nos roubam o sorriso, a saúde, as escolas, os hospitais, a segurança e os direitos básicos como ir e vir. Em um passado remoto, a saída para o Brasil era o aeroporto, mas as fronteiras se fecham cada vez mais em um mundo de guerras que fabricam refugiados, preconceitos, intolerâncias e discriminações generalizadas. Há tempos é assim, e assim sobrevivemos. Até quando? Quantos chegarão aos 75 anos de vida ou de sobrevida? O que fazer desta vida pelo tempo que for?

 

És um senhor tão bonito quanto à cara de meu filho, tempo, tempo, tempo, tempo, vou te fazer um pedido: tempo, tempo, tempo, tempo…

 

Quando vi Caetano Veloso ao vivo pela primeira vez, ele estava prestes a fazer 51 anos, durante seu show Circuladô, no Canecão. Fiquei hipnotizado por ele. Talvez, eu nem soubesse que o admirava tanto como poeta, artista, intérprete, e como brasileiro. Eu era jovem e ele ainda não era velho. Hoje, estou mais próximo daquele Caetano de 1992 com a idade que tenho agora. Ele, apesar de velho, parece mais jovial que muitos rapazes musculosos de pensamentos ocos e caretas caminhando sob  o sol. Tudo se mistura, passado e presente, confunde ideias e memórias.

 

Temos retrocedido humana e politicamente em tantos aspectos neste país, um horror brutal que nos ofende diariamente. A Pátria patriarcal (ou mais matriarcal?) tem testemunhado muitas baixas. Famílias que perdem meninos e homens, meninas e mulheres, vítimas da violência, do desemprego e da desesperança. Nem todos os filhos deste solo são gentis como tu és, Mãe e Pátria Amada. O amor de pai se perde, o amor pelo país ameaçado, também. Há uma estranheza de forças nos afetando a todos. Tristes? Sim, também somos. E velhos.

 

…Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista. O tempo não para, e no entanto, ele nunca envelhece. Aquele que conhece o jogo, do fogo das coisas que são, é o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão…por isso uma força me leva a cantar…

 

Eu escrevo para aliviar o peito. Vivo em uma cidade que dizimou índios, que aboliu de seu nome os goytacazes, mas que os ressuscitou apenas em palavra para complementar ou enfeitar uma Campos de sombras mortas ou quase mortas no norte fluminense. Pelo país afora, nações indígenas e outros brasileiros mestiços sofrem todo tipo de ameças por um pequeno grupo de poderosos que destrói o Brasil da maneira mais vil. Somos plateia inerte que resmunga, que reage com palavras suprimidas.

A omissão dos brasileiros custa caro aos chefes de família de bem, aos policiais honrados (sim, estes existem também e precisamos falar melhor sobre isso, tentarei), aos milhões de anônimos sem voz e sem vez. Nem todos possuem a projeção e o reconhecimento de um Caetano Veloso. Só que nem ele, nem algum de nós sozinhos conseguiremos muita coisa em favor do Brasil, se não houver consenso e cooperação (romântico?). Como (re)unir a Nação? Quem sabe, um índio descerá de uma estrela brilhante e virá impávido que nem Muhummad Ali no coração da América do Sul para abrir nossas mentes e visões?

 

…E aquilo que nesse momento se revelará aos povos, surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido óbvio.

 

As letras de Caetano Veloso, as ações e intenções de policiais, de políticos, de pais de família e de todos os cidadãos brasileiros podem ajudar a transformar este país afetuosamente? Afinal, se gente é para brilhar, não para morrer de fome, é preciso alimentar e realimentar Campos, o Rio de Janeiro e o Brasil inteiros, de fevereiro a fevereiro na melhor das hipóteses, ou, de dezembro a dezembro entre os mais otimistas. Façamos nossas listas ao levantar da cama. O fim vem, mas o reinicio também.

 

Meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo que quer… meu coração vagabundo quer guardar o mundo em mim.

 

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Este post tem um comentário

  1. Sandra Caetano

    Amei ler! Pra cada pontada de dor no coração,
    porque é tudo verdade e não devia… tive
    o prazer de ouvir a poesia do Caetano.
    Parabéns!!! Obrigada!

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