Fernando Leite — De mãos dadas

 

(Ao meu pai,  Anleifer)

 

(Foto: Arquivo de família)

Já caminhei muitas vezes de mãos dadas com meus filhos e com os meus netos. Isso não é, apenas, um gesto, é um símbolo do amor indissociável, do amor incondicional, atávico, cósmico, entre pai e filho.

E é uma compensação da natureza ao homem, já que durante a gestação, o filho fica ligado, anatomicamente, à mãe, pelo cordão umbilical.

Eu ainda não tinha 6 anos quando o meu pai morreu. “Foi para a outra margem do rio”. Cresci, à sombra benfazeja de minha mãe, Djanira, uma jovem viúva, matriarca de uma família de 6 homens e duas mulheres, nas franjas rurais do município de São Fidélis. Nada me faltou: proteção, educação e um amor desmedido, embora contido, tímido, mas pleno. Amor encabulado.

A ausência do meu pai, Anleifer — esse nome pouco comum é anagrama do nome de seu pai biológico, Antonio Leite Fernandes, um português, que chegou ao Brasil, nos anos finais do século 19, no navio La Plata, que deixou Lisboa, numa manhã ensolarada do verão lusitano – começou a doer depois que fui inaugurado como pai. Quando joguei bola com meu filho, quando minhas filhas cobravam minha companhia pelo motivo que fosse.

Foi preciso ser pai para medir a dimensão dessa falta, que já latejava em mim e eu não percebia.

Lembro-me que, noite alta, fechava janelas e portas e antes de dormir, ia aos quartos dos meus filhos para me certificar que dormiam protegidos e serenos. Nessa hora, as raras lembranças que guardava dele em minha memória afetiva, afloravam: uma viagem que fizemos e fomos surpreendidos por uma chuva torrencial e seu paletó foi minha capa de proteção; algumas matinês no cinema da cidade, domingo à tarde e o rito que eu e meu irmão mais velho, Guilherme, cumpríamos, depois do banho, de roupa limpa e cabelos penteados. Chegávamos no quarto, onde, na cama, ele enfrentava com impecável coragem e resignação um câncer em fase terminal, e nos exibíamos para seu julgamento: “Tô bonito, pai?” Ele repetia, religiosamente: “Tá lindo!”.

Meu pai era um consumidor voraz dos romances brasileiros, era autodidata, um guarda florestal, que reunia a família nos verões e se mudava com malas e traquitanas, na carroceria de um caminhão, para a distante e inesquecível Guaxindiba. Naquela época longínqua, os nossos verões eram mágicos. Ele sabia, mesmo na lonjura daquele tempo que as pessoas “não querem só comida, querem comida, diversão e arte”.

Neste domingo último, dia 20, ele completaria 103 anos.

Fefê, como era conhecido pela família e pelos amigos, foi um grande homem, para além de suas muitas virtudes, que fiquei sabendo pelo relato de meus irmãos mais velhos, pela vida difícil que teve quando menino, vítima da truculência de seu padrasto, por ter sublimado o sofrimento por conta do amor que devotou à sua mãe, minha vó Rosalina, pelo seu gosto pela literatura, pelo cinema, pelo semblante sempre sereno que revela nas poucas fotografias que deixou.

Vendo sua imagem, lembro-me do ator Humphrey Bogart, sobre quem meu pai levava duas enormes vantagens: não fumava e era mais bonito.

Esse meu pai, com quem pouco fiquei, quanto mais passo pelo tempo, ocupa mais espaço na varanda da minha saudade, o que me faz reconhecê-lo, cada vez mais, em mim. Física e psicologicamente.

Queria a chance de uma breve caminhada que fosse, com ele de mãos dadas. Nem seria necessário conversarmos. Andaríamos em silêncio. De mãos dadas, pai e filho.

 

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Este post tem 2 comentários

  1. Sandra Caetano

    Muito bacana, cheio de emoção
    e delicadeza! Parabéns!

  2. Sandra Maria T Santos

    Belas lembranças e colocadas no papel como ninguém o faria

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