Em 30 de agosto de 2016, esta coluna fez (aqui) um alerta ao ex-governador Anthony Garotinho (PR) e seu grupo político: “E quem acha que a reversão desse quadro (então já desfavorável à candidatura garotista de Dr. Chicão) é possível com a prática que foi alvo de duas operações da Justiça Eleitoral — (aqui) num galpão da Alberto Lamego, no domingo (28), e (aqui) numa auto escola em Travessão, ontem (29) — talvez valha a pena observar o rigor da lei com Lula (já investigado pela Polícia Federal na Lava Jato) e Dilma (que tinha seu impeachment julgado no Senado) para saber que ‘m…’ muito maior ainda pode estar por vir”.
“Escandaloso esquema”
Em agosto do ano passado, vivia-se a campanha das eleições municipais de Campos. E todos na cidade podiam observar abertamente no dia a dia, nas ruas e em seus bairros, a tentativa desesperada do garotismo de não largar o osso do poder, que então já roía sem intervalo há quase três décadas. Aquela nota de 30 de agosto de 2016 do “Ponto Final” foi feita após operações da Justiça Eleitoral, nos dois dias anteriores (28 e 29). A partir delas e de outras que vieram depois, o Ministério Público Eleitoral (MPE) denunciou (aqui) como “escandaloso esquema” a troca de Cheque Cidadão por voto, com o objetivo de eleger Chicão prefeito e vereadores rosáceos.
O resultado eleitoral
Para se ter uma ideia da dimensão desse esquema, até junho de 2016, havia 14.991 pessoas cadastradas no Cheque Cidadão. E de junho a agosto daquele ano eleitoral, o número chegou a 32.506, aumento cuja falta de critérios foi denunciada pelas próprias assistentes sociais da Prefeitura. Diante desse quadro, o garotismo não precisou nem esperar o 2º turno da eleição para se atolar na própria “m…”. Com o esquema de compra de voto com medo de sair às ruas, após as operações e prisões da Chequinho, Rafael Diniz (PPS) se elegeu prefeito ainda no 1º turno de 3 de outubro, vencendo o pleito em todas as sete Zonas Eleitorais (ZEs) do município.
Primeira prisão
Mas a “m…” não pararia aí. Com o avanço das investigações da Chequinho, Garotinho foi apontado (aqui) como “prefeito de fato” de Campos e líder do “escandaloso esquema”. Preso em seu apartamento no bairro carioca do Flamengo, em 16 de novembro, ele alegou estar passando mal e se internou no Hospital Municipal Souza Aguiar. Como a Justiça entendeu que se tratava de uma manobra, no dia seguinte (17), o ex-governador foi conduzido à força (aqui) ao Complexo Penitenciário de Bangu. A cena de Garotinho se debatendo aos berros, numa maca, passou a integrar o folclore daquilo que de mais patético a política brasileira já foi capaz de produzir.
Passagem em Bangu
Ainda que os exames realizados na UPA de Bangu não tivessem detectado (aqui) qualquer anormalidade no estado de saúde de Garotinho, ele foi beneficiado (aqui) com a prisão domiciliar em 18 de novembro. A decisão foi de Luciana Lóssio, então ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que ficou conhecida entre os campistas por reverter todas as consequências mais duras contra os envolvidos na Chequinho. Posteriormente, no julgamento pelo plenário do TSE, a prisão domiciliar no apartamento do Flamengo acabou revista, mas com restrições: não voltar a Campos, não ter contato com as testemunhas do processo, nem sair do país.
Pena de 9 anos e 11 meses
Beneficiado, Garotinho passou a fazer ataques sistemáticos, em seu blog, nas redes sociais e no programa que comprou na rádio Tupi, contra as autoridades responsáveis pela Chequinho. Paralelamente, promoveu um troca-troca de advogados raras vezes visto, na tentativa de ganhar tempo no seu julgamento criminal pelo juízo da 100ª ZE de Campos — intenção condenada pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE). De pouco ou nada adiantou: na manhã de ontem, ele foi condenado (aqui) a 9 anos e 11 meses de prisão, pelos crimes de corrupção eleitoral, associação criminosa, supressão de documentos e coação no curso do processo.
Arma de fogo e “venda do futuro”
A sentença de condenação do juiz Ralph Manhães tem 175 páginas de word. Seus principais trechos estão na página anterior desta edição. Impossível abordar todos aqui. Mas, mesmo para quem conhece o modus operandi de Garotinho, choca saber que se chegou “à prática de coação e intimidação de testemunhas, inclusive com emprego de arma de fogo”. Assim como descobrir que a “venda do futuro” de Campos, fechada (aqui) no apagar das luzes do desastroso governo Dilma Rousseff (PT), em troca (aqui) da abstenção de Clarissa Garotinho (PR) na votação do impeachment da então presidente, “é que custeou todo o esquema criminoso”.
Tamanho da “m…”
O prejuízo que o “escandaloso esquema” deu aos cofres públicos de Campos foi contabilizado em R$ 11 milhões. Se não fosse interrompido, o programa seria expandido com objetivo eleitoral ao custo final de R$ 25,2 milhões. Com a prisão do ex-governador, na manhã de ontem, enquanto fazia seu programa na Tupi, quem o substituiu disse no ar que o titular recebera “orientação médica de parar de falar”. Na verdade, quem não ouviu o alerta desta coluna, nem costuma escutar ninguém, recebia naquele momento voz de prisão. Trazido a Campos, onde ficará confinado na “casinha da Lapa que papai deixou”, Garotinho agora poderá refletir sobre o tamanho da “m…”.
Publicado hoje (14) na Folha da Manhã
Atualização às 9h47 para inclusão abaixo do clipe enviado por uma leitora gaiata:
A era das vacas gordas chegou ao fim. Os poços que jorravam o ouro negro nas costas do Cabo de São Thomé estão maduros e despejam cada vez menos dinheiro nos cofres públicos e uma das revelações dessa nova realidade, sempre anunciada e nunca admitida, é que durante três décadas, a administração municipal descuidou-se totalmente da arrecadação chamada de própria, aquela resultante da atividade econômica local. A abundância de recursos externos era tanta, que os últimos governos praticamente tratavam como isentos os contribuintes, pessoas físicas e jurídicas, e essas receitas não significavam nem 5% da receita total do município.
O descuro levou praticamente à desativação da máquina arrecadatória. Basta olhar para a Secretaria Municipal de Fazenda hoje, que conta com uma dezena de fiscais, sendo todos ou quase todos, remanescentes de uma época em que concurso ainda não era exigência para ingresso no serviço público. Sem falar no jurássico sistema de controle de arrecadação…
Esse populismo fiscal que beneficiou empresários e proprietários de imóveis nos últimos anos, mal começou a ser enfrentado pelo atual governo e já surgem reações veementes, principalmente daqueles que mais se beneficiaram com a situação anterior. Como outros setores da sociedade, parte do empresariado local também foi contaminada pela dependência epidêmica dos royalties e, como outro qualquer vício, é preciso reconhecer a dificuldade de mudar de hábitos. Principalmente quando mudar representa aumentar custos/reduzir lucros.
É justificável que no país que tem uma das maiores cargas tributárias do mundo, ninguém goste de pagar imposto, porque tem, todos os dias, exemplos de desvio de finalidade em todos os níveis. Se fiscalizássemos mais o uso dos nossos impostos o resultado seria melhor do que simplesmente sonegar porque os governos gastam mal. Aliás, uma das teorias de formação do Estado, quanto os homens ainda eram nômades, ensina que certa tribo resolveu fixar-se numa área onde teria encontrado terras férteis e ali iniciado atividades agrícolas e, para manter essa sociedade agora não mais nômade, passou a cobrar tributo (pedágio) em troca da permissão para que outros nômades passassem por suas terras. O imposto, assim, teria nascido junto ou até mesmo antes do Estado primitivo.
De volta à Planície Goitacá, em época recente, o dinheiro dos royalties estava de tal forma impregnado na sociedade campista, que criou situações inexplicáveis, como por exemplo, a doação de dinheiro à Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) para promover as Feiras de Preços Especiais (Fepe). Nos anos de 2013, 2014 e 2015, a entidade lojista recebeu dos cofres municipais entre R$ 80 mil e R$ 50 mil por edição em que os participantes, juntos, faturaram em torno de R$ 5 milhões por evento. As informações oficiais foram registradas às épocas respectivas pelo Blog “Eu Penso Que…” (aqui e aqui).
Chegou a hora de retribuir. Com metade do orçamento que a máquina municipal movimentou em 2016 — cerca de R$ 3 bilhões contra R$ 1,5 bilhão em 2017 — o governo Rafael Diniz se mostra disposto a chamar à responsabilidade os setores que mais se beneficiaram do tempo das vacas gordas para que agora ajudem a enfrentar os tempos difíceis. O novo Código Tributário Municipal, fruto da proposta de Lei complementar 0133/2017, aliás, precisa ser debatido no contexto de reorganização do sistema de arrecadação local pós-royalties e sem esquecer as décadas de frouxidão fiscal dos anos de bonança. O fechamento de cerca de 700 pontos comerciais locais não cabe na discussão do novo Código Tributário porque é consequência da crise nacional e eventuais ameaças de demissões e encerramentos de atividades de outros estabelecimentos empobrecem o debate.
O caminho parece ser o do entendimento para que os valores das taxas e tributos sejam reajustados para níveis mais próximos da realidade e longe do populismo fiscal. Ao mesmo tempo, urge uma modernização da máquina de arrecadação, incluindo material humano qualificado e comprometido com a excelência da finalidade do serviço público.
Retribuir aqui não tem o sentido filantrópico e sim do exercício da responsabilidade social inerente à atividade econômica, conforme preceito da Constituição Federal e que se traduz, no dia-a-dia na colaboração ativa para a construção da Nação, não só na geração de empregos, como também, pelos impostos locais, garantir os serviços essenciais mais próximos do cidadão como iluminação pública, coleta de lixo, escolas, creches, serviços de saúde e a própria estabilidade social.
Impotente. Diante da ameaça e da perplexidade, algumas pessoas não conseguem reagir à mesma altura de um carrasco, bandido, criminoso, abusador ou do opressor. Estes, destemidos, não medem ações ou consequências quando querem atingir um objetivo, humilhar ou abater a vítima. O ataque cometido por “tarados exibicionistas” ou “pervertidos velados” dentro de ônibus, dentro do Congresso Nacional ou do Planalto (dentro da política em geral) ou do STF (a sigla pode ser reconfigurada), além de empresas que mantêm ligações perigosas como a J&F, por exemplo, me levam a imaginar nossa sociedade se afogando em ejaculações escandalosas ou sob excreções fétidas por um longo e tenebroso inverno. Brasil estuprado e na pior. Horror.
Muitos se chocaram com os flagrantes de homens acusados de se masturbarem dentro de transportes coletivos, e de constrangerem mulheres (e homens. alguns indefesos, também) que ainda sofrem discriminação e desconfiança de conduta quando resolvem denunciar seus abusadores, como os casos recentes que vimos na cidade de São Paulo. Já outras pessoas, talvez, possam nem ter se dado conta dos fatos graves, mas estes são mais frequentes do que se imagina. No fim dos anos 1980, uma colega de faculdade em Campos, chegou aos prantos à instituição de ensino, pois ao descer do ônibus lotado, percebeu que sua roupa estava molhada de sêmen que algum homem ejaculou nela. Pensei comigo, há pessoas capazes de coisas detestáveis e inimagináveis. Tara, distúrbio, bestialidade incontrolável? Horror.
Acredito que os homens acusados de cometerem esses atos libidinosos, no mínimo, sofram de algum transtorno, pois não conseguem controlar seus instintos ou impulsos sexuais. Talvez, semelhantemente aos dependentes químicos que não conseguem se livrar dos vícios de álcool, drogas, cigarro, tranquilizantes, os descontrolados sexuais causem, em princípio, um espanto a mais. Boa parte da sociedade (ainda) enfrenta o desconforto de falar ou de viver a sexualidade dita “normal” ou “saudável”, que dirá das “abusivas”.
Compreender maníacos em geral não é tarefa fácil, cá entre nós. Maníacos por sexo e por corrupção, também. Não sei se as pessoas se indignaram tanto ou até mais com outro fato asqueroso dos últimos dias: a enorme quantidade de dinheiro encontrada em caixas e malas em um apartamento vazio na cidade de Salvador, Bahia. Segundo a Polícia Federal, a fortuna de 51 milhões de reais pertenceria ao ex-ministro do PMDB, Geddel Vieira Lima. Suspeita-se que o dinheiro seja proveniente de propinas ou de desvios de dinheiro público. Geddel coleciona escândalos e acusações ao lado de outros políticos poderosos como o presidente Michel Temer, e os ex-presidentes Lula e Dilma. Ele já foi ministro de confiança de todos e elogiado por todos. Horror.
Houve quem desejasse estar no lugar de Geddel com tanto dinheiro vivo assim dentro de casa, sonhos de consumo, de ter dinheiro fácil. Parece cena de ficção como a da personagem Bibi interpretada pela atriz Juliana Paes na novela da TV Globo, A força do querer. Mulher de traficante, deslumbrada, ao encontrar milhões em notas de dinheiro em espécie referente ao comércio ilegal de drogas e armas, ela não resiste, e pede para ser fotografada mergulhada no dinheiro. A demonstração de status e poder da personagem foi parar nas redes sociais na ficção e fora dela.
A fortuna encontrada no apartamento da capital baiana atribuída a Geddel Vieira Lima também soa como algo ficcional, mas, infelizmente, é a pura realidade. Políticos e empresários corruptos roubam dinheiro de escolas, hospitais, universidades ou da segurança pública, como se fosse algo natural. Quem sabe, como muitos compulsivos sexuais, eles acham aceitável ejacular em público, no pescoço, no rosto ou na roupa de qualquer mulher dentro dos ônibus. A perversão por roubo de alguns homens públicos supera a da ficção televisiva. Horror.
A falta de punições justas (ou seriam leis justas?), ou a sensação de impunidade, algo comum entre os brasileiros, possivelmente, contribuem para que a corrupção e os crimes sejam praticados sem maiores dificuldades. Não são só políticos, empresários ou traficantes que representam o que há de pior na sociedade quando o assunto é corrupção ou ilegalidade. Culturalmente, o país do “jeitinho” ou do “deixa isso pra lá” acostumou-se há pelo menos 517 anos com coisas ilícitas e inconvenientes. Seja pela violência ameaçadora, seja pela indiferença ameaçadora, pessoas vivem ou sobrevivem pelo poder, pela posse de algo, custe o que custar. E roubando. Não se pode generalizar a desonestidade entre políticos e empresários, é verdade. Porém, o senso comum tem nos desanimado bastante.
Apesar de tantas denúncias, delações ou colaborações premiadas, das prisões de políticos e de empresários poderosos, como temos visto nos últimos anos com a operação Lava Jato, às vezes, tenho a sensação de que tudo não passa de encenação, de obra fictícia, uma série de televisão ou um filme como o que acabou de estrear nos cinemas, A lei é para todos, de Marcelo Antunez. Não me animei em assisti-lo, pois já bastam as notícias desestimulantes e diárias sobre os escândalos, o jogo político perverso e pervertido que somos obrigados a lidar. Protestos fazemos? Quem sabe, em uma postagem no Facebook (ou seriam nas urnas?). Horror.
Temos convivido com políticos e empresários enganadores e mentirosos que demonstram um apetite insaciável para gozar sadicamente às custas do dinheiro da população. De Eduardo Cunha a Marcelo Odebrecht, de Antônio Palocci a Joesley Batista, de Aécio Neves a Eike Batista, só para citar alguns dos mais famosos. Eles gozam da nossa cara ou na nossa cara sem a menor vergonha ou embaraço. Há um prazer sórdido para enriquecerem se apropriando do dinheiro arrecadado por meio de altos impostos e contribuições. Nessa relação, sociedade e homens de poder alimentam uma espécie de transa sadomasoquista violentíssima. A gente sofre todas as agressões e despautérios, mas pouco ou nada faz para se livrar desses maníacos bem-vestidos e endinheirados. Resquícios dos hábitos da casa grande e da senzala? Talvez. Ou ainda, pode ser reflexo da opressão dos anos de chumbo durante a ditadura militar. Estamos sendo devorados por outras ditaduras e ditadores, ultimamente, em todas as esferas de poder. Manda quem pode, obedece quem tem “juízo”. Horror.
Tentar ser otimista e esperançoso diante dos últimos acontecimentos no Brasil, exige uma dose extra de vigor e desejo. No fim dos anos 1980, o psicanalista, escritor e cineasta Roberto Freire publicou o livro Sem tesão não há solução, contendo ensaios em que analisa questões psicológicas associadas à política. Se o Brasil não é para amadores, não sei que leitura Sigmund Freud faria a nosso respeito. Gozar o prazer e a felicidade de uma vida digna não é nenhum sonho ou fantasia impossíveis. Porém, neste país, isto é privilégio de muito poucos. A gozação ou a piada que nos fazem têm sido de muito mau gosto e bastante agressivas. Estuprar e ejacular na cara da Nação me dá vergonha e nojo. Há quem não se sinta assim, infelizmente, e a prova está aí, quase todos os dias nos nossos noticiários. Impotente.
No trajeto, uma intensa batalha travada no trânsito. A tentação de aderir à irregular fila dupla e passar à frente dos carros que aguardavam na mão convivia com a dificuldade em entender um bloqueio que colocava na mesma pista carros que iam ao desfile com os que fugiam para as praias. Quase uma hora depois, ao chegar próximo ao colosso de 80 milhões de reais(!!!!), vi vários flanelinhas uniformizados e preenchendo talões de duas vias comprados na gráfica da esquina. “São 10 reais. Estamos cobrando adiantado”. Paguei sem pestanejar, afinal, um polimento sairia mais caro. “Vamos ficar até o último carro”. Não mais o vi. Aliás, notei o plural: ele e os outros colegas deviam ter conseguido o direito de explorar o estacionamento em alguma concessão pública, pensei.
Caminhando para a entrada, ouço uma música aproximando-se rápido. Era um ônibus trazendo alguma delegação que desfilaria. Cantavam um hino cívico mais ou menos assim: “Ih, f**eu, a ***** apareceu”. Não entendi muito bem quem estava aparecendo, mas agora não importa. Tivesse eu ouvido o alerta daqueles jovens, o tema do texto seria outro.
Cheguei às arquibancadas. Um sol para cada um. O número de ambulantes anunciando seus produtos perdia por pouco para o número de potenciais consumidores. Para aqueles que, como eu, defendem que o pior da crise passou, observar aquela quantidade de vendedores foi um convite para repensar o otimismo.
Pus os olhos na pista. Dezenas de pessoas à paisana transitavam pelas laterais. Seria um corredor de dispersão? Percebi que não quando vi alguns carrinhos de picolé na avenida. Àquela altura, o Exército, a Polícia e os Bombeiros já haviam desfilado. Disputando espaço com transeuntes, ambulantes e diversas pessoas da (des)organização do evento, algumas delegações mal ocupavam meia pista. Bastantes minutos se passaram e o mais próximo possível de algo cívico foi o desfile de, aparentemente, representantes de alguma igreja evangélica. A expressão da religiosidade é, há algum tempo, a única tradição de um passado recente que ainda permeia o tecido social deste país, suspirava eu, saudoso dos tempos não vividos.
Ouvi a plateia agitar-se. Reparei, ainda longe, uma delegação de tamanho razoável. À frente, um rapaz dançava uma mistura de ritmos alegremente, mesmo sem música. Alternava passos de samba com reboladas frenéticas de funk. Alguns aplaudiam efusivamente. Outros, como eu, buscavam significado para aqueles quadradinhos de oito no 7 de Setembro. Concluí que aquilo só podia ser uma homenagem à música popular brasileira (não à MPB, que na verdade é música da elite, mas àquelas escutadas pelo povão mesmo). Já estava a postos para ajudar com um comprimido de Tramal dada a iminência de um mau jeito na coluna do dançarino quando me dei conta de que havia cometido um erro crasso de localização. Na pressa de chegar ao destino, peguei a entrada errada. Ao invés de ir para o Cepop, parei no Sambódromo!
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PS: na semana da comemoração dos 195 anos de Independência, assistimos atônitos passivos à contagem manual dos R$ 51 milhões de reais do peemedebista Geddel Vieira Lima, descobertos em malas e caixas. Um dia depois, o ex-todo-poderoso ministro dos governos Dilma e Lula, Antônio Palocci, fez os brasileiros dormirem assombrados com a confirmação de cifras multibilionárias das propinas pagas pela Odebrecht ao eterno perseguido das elites, Luiz Inácio Lula da Silva. Tido como redentor dos pobres e dos oprimidos por “500 anos”, Lula é incensado por alguns intelectuais de miolo mole como marco zero da real independência brasileira. A ser verdade, a propina da Odebrecht está para ele como a famosa indenização paga pelo Brasil à Portugal e Inglaterra por sua própria independência. Essas bandas sempre tiveram vocações para o ridículo.
PS 2: aliás, dado o conteúdo das gravações desastradas de Joesley Batista e Ricardo Saud, é inevitável dizer que nossa vocação mesmo é a pornochanchada.
“Sou homem, nada humano me é alheio”. Ainda que o homossexualismo fosse prática aceita no mundo greco-romano da Antiguidade, o poeta e dramaturgo latino Públio Terêncio (185 a.C./150 a.C.) talvez não imaginasse como, mais de dois milênios depois do seu verso, se multiplicariam as definições de gênero e sexualidade. Mas, por humanas, saberia que ninguém lhes poderia ser alheio. Caixa de ressonância do mundo de hoje, o Facebook oferece nos EUA, desde março 2014, 56 opções de identificação de gênero na montagem de cada perfil pessoal. Um ano depois, a maior ágora virtual do planeta passaria a ofertar 17 alternativas de gênero aos seus usuários do Brasil.
— Aquele desenho que toda a criança faz, com pai, mãe, filho ou filha, casa e árvore, não esgota mais o conceito de família. E isso hoje acontece até com os heterossexuais. A mulher casa com um homem e leva seus filhos de uma relação anterior. Ou é o homem que leva os seus para a nova relação. O mundo mudou, ficou mais dinâmico. E o conceito de família também — exemplifica Renata Melila Duarte, 39 anos, mulher transgênero (identificada com o gênero oposto ao dado no nascimento), que há anos rompeu com o batismo de Carlos Renato. Cursando serviço social na Universo, ela trabalha há 10 anos como assessora da presidente da Associação Irmãos da Solidariedade, Fátima Castro, na assistência aos soropositivos de HIV em Campos.
O conceito de transgênero foi estabelecido em 1965, pelo psiquiatra estadunindense John F. Oliven, da Universidade de Columbia, a partir do seu trabalho referencial “Higiene Sexual e Patologia”. O debate sobre a questão saiu da medicina, psicologia, antropologia, sociologia, filosofia e direito, para entrar de vez nos lares brasileiros com a exibição de “A Força do Querer”, novela das 21h da Rede Globo — variação eletrônica dos anfiteatros de Terêncio. Na TV, a atriz homossexual cisgênero (identificada com seu gênero de nascimento) Carol Duarte vive Ivana, em conflitos com sua família ao se assumir homem trans. Na arte que imita a vida, Ivana tem como referência Tereza, nome de batismo do ator trans Tarso Brant, que interpreta a personagem e serviu de inspiração para Glória Perez abordar o tema em seu folhetim.
Curiosidade para muitos em relação a Ivana é que, mesmo sendo um transgênero masculino, ele não demonstrou ter atração por mulheres, embora já tenha se relacionado com um homem na novela. Na vida real, o jovem Átalo Willian Barreto dos Santos é um homem trans de 20 anos. Ator e estudante do curso de licenciatura de teatro do Instituto Federal Fluminense (IFF), ele deixou o nome de Larissa, mas não só se identifica, como se interessa por homens. E explica isso com serenidade e articulação:
— Sempre ouço essa pergunta: “Como você é um transgênero masculino se não se relaciona com mulher?”. Para mim, sempre foi natural. O homem que é gay, não deixa de ser homem por isso. O transgay também não deixa de ser homem por isso. Dentro de todas as classificações possíveis, é essa que me cabe. Com o tempo a gente percebe que, mesmo trans, é homem do mesmo jeito. É essa consciência de gênero que controla o nosso corpo. No teatro, eu aprendo que a mente controla o corpo. Sempre tive afinidade com homens homossexuais. É o que eu sou. Quando criança, tinha aquela separação entre meninos e meninas. Eu ficava com as meninas, sem estar.
Em que pesem todas as discussões e polêmicas, ninguém parece discordar que o caminho seguido por Renata e Átalo, como de muitos outros transgêneros em Campos, no Brasil e no mundo, ainda é cercado de preconceito. Marginalizados, são muito poucas as oportunidades profissionais dadas pela sociedade a alguém que se identifica com o gênero oposto ao do nascimento:
— É importante dizer isso: o transexual não consegue emprego. Você não vê uma trans trabalhando num banco, numa empresa. Marginalizada, tratada sempre como cidadão de segunda classe, a maioria acaba empurrada para a prostituição. O máximo que conseguem, dentro de um emprego dito normal, é trabalhar em salão de beleza. A transexual é vista como marginal, que anda com gilete, esse tipo de coisa. Só quem conhece, quem está próximo, sabe que a coisa não é assim. Mas existe esse misticismo, que segrega. Conheço o caso de uma trans de Campos que a família não aceitava. Os amigos abandonaram. E, sem apoio, ela se suicidou. É uma coisa feudal! — denuncia Renata.
— No curso de teatro do IFF, encontrei pessoas mais abertas. Externei a eles a minha condição e senti acolhimento. Mas sei que não é sempre assim. Sem mercado de trabalho, por conta da sua identificação de gênero, muitos trans têm que recorrer à prostituição para ser o que são e conseguirem sustento. Não sou ativista. O que posso fazer é mostrar minha questão, talvez servir como referência a outros rapazes trans. É uma coisa que não pode ser inviabilizada. Não dá para encarar isso apenas de forma científica ou religiosa. As pessoas precisam enxergar que existe outra forma de ser humano. Não é doença, não me debilita, não tira minha consciência. Até ajuda a me encontrar como pessoa. Gênero e sexualidade não são a mesma coisa — diferencia Átalo.
Dentro do universo trans, tão diverso como qualquer outro nicho humano, varia também o conceito de família. Renata é casada há seis anos com o pedreiro Alan Rodrigues Muniz, de 29, com quem leva uma típica vida de casal. Ela o conheceu numa festa de rua em Itaperuna. Eles planejam adotar um filho, depois que Renata passar pela cirurgia de mudança de sexo, feita no Brasil pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2008:
— Estou há seis meses na fila do SUS para fazer a adequação de sexo. A espera é de dois anos. É o tempo que a lei exige até a aprovação do psiquiatra e do psicólogo, que acompanham cada caso. Tomo hormônios femininos há 15 anos e, há cinco, coloquei próteses de silicone nos seios. Já dei entrada no Ministério Público para mudar minha carteira de identidade. Eu e meu marido pensamos, sim, em adotar um filho. Tanto faz se menino, ou menina. Para criação de uma criança, a base de tudo é o respeito e o amor. No tempo devido, vou esclarecer as opções: menino pode gostar de menina e menino, menina pode gostar de menino e menina. A decisão será só dele, ou dela. Qualquer que seja, eu vou apoiar como mãe.
Fazendo acompanhamento psicológico há um ano, onde sua condição de homem transgênero foi constatada, Átalo ainda não toma hormônios masculinos, nem pensa em fazer a operação de redesignação sexual, mais complicada para quem nasceu com corpo feminino. Embora não se encaixe no padrão monogâmico, mais “tradicional” de Renata, ele também pensa em ter um filho, talvez até gestá-lo:
— Penso em criar laços familiares, sim. Mas acho que casamento é uma convenção. Você precisa ter laços, ser monogâmico, dividir bens. Não sou monogâmico, como não sou promíscuo. Depende do que a outra pessoa pense de casamento. Também penso em ter um filho, mas não sei como. Mas penso em gerar, sim. Sempre tive essa coisa de perpetuação genética. Isso para mim é um sentido de paternidade, não maternidade. Para engravidar, o homem trans tem que parar de tomar hormônios. Só depois de dar à luz e, se quiser, amamentar, pode votar a tomar hormônios. A outra forma é inseminação, ou adotar.
Através de suas próprias experiências, Renata e Átalo saíram de pontos de partida diferentes. Mas em oposição às designações de gênero recebidas no nascimento, buscaram na mesma humanidade da qual falava Terêncio a resposta ao questionamento mais básico: quem sou?
— Eu nasci em um corpo, mas sei que isso não me pertencia. Minha alma é feminina. Eu sou mulher! Simples assim! — define Renata, caminhando de encontro ao testemunho de Átalo:
— Depois de refletir, cheguei à conclusão: não sou mulher! Nunca me vi. Nunca me senti. Identidade é uma coisa muito importante. É o que a gente é para o mundo. É o que somos para nós mesmos.
“O mundo é sortido, Senhor”. E não é de hoje
Para quem pensa que a complexidade entre gêneros e sexualidade é “produto dos tempos modernos”, ou pós-modernos, um pouco de trabalho de pesquisa sobre o assunto pode ser surpreendente. Na Grécia antiga, cujos valores culturais foram legados ao Império Romano, havia a cultura da efebia, pela qual era visto com naturalidade o hábito de um homem mais velho tomar um mais jovem como amante. O objetivo era também prepará-lo para a vida cívica e militar. A partir da relação entre os heróis míticos Aquiles e Pátroclo, na Guerra de Tróia narrada na “Ilíada”, do poeta Homero (séc. 8 a.C.), base de toda a cultura ocidental, historiadores contemporâneos como o inglês Arnold J. Toynbee (1888/1975) observaram que: “na Grécia, o amor romântico era entre homens”.
Em importantes cidades estado gregas como Tebas e Esparta, as relações homossexuais eram reguladas por legislação específica. Por outro lado, foi pelo fato da poeta grega Safo (séc. 7 a.C.) ter nascido na ilha de Lesbos e dedicado parte da sua obra ao canto do amor por outras mulheres, que as homossexuais femininas passariam a ser conhecidas como lésbicas. Considerados os maiores generais e conquistadores, respectivamente, das civilizações grega e romana, Alexandre Magno (353 a.C./326 a.C.) e Júlio César (100 a.c./44 a.C.) eram conhecidos por terem amantes de ambos os sexos.
Em outras culturas, frutos de outros processos civilizatórios, as questões de gênero e sexualidade foram ainda além. Na cultura Iorubá, trazida pelos negros africanos que vieram escravizados ao Brasil, a questão do gênero se dá na forma de princípio ativo (masculino, positivo) e passivo (feminino, negativo) entre suas divindades: os orixás, que representam a dualidade da natureza. A mitologia conta que a cada orixá foi designado a regência entre pontos positivos e negativos, para manter a harmonia e o equilíbrio. Popularmente, eles passaram a ser mais conhecidos como orixás masculinos e orixás femininos, além dos chamados orixás meta-meta — expressão difundida apenas no Brasil para designar orixás que tendem a ficar um período na regência do lado ativo, masculino, e em outro período na regência do lado passivo, feminino.
O candomblé apresenta uma grande tolerância à diversidade, como explicou Reginaldo Prandi, professor da USP especializado nessa religião. “O candomblé é calcado na diversidade, ou seja, considera que nós todos não temos a mesma origem: cada um vem de um lugar, da terra, do trovão, do mar, etc. Cada um vem de um orixá que comanda uma parte da natureza. A primeira base do candomblé é a diversidade.” Essa base na diversidade dá o respaldo para que o candomblé lide melhor com a homossexualidade.
Da ponte entre África e Brasil para o Oriente Médio, há um dado que pouca gente parece saber: desde 2008, a teocracia islâmica do Irã é o segundo país do mundo, atrás apenas da Tailândia, em número de operações de troca de sexo. E todas são bancadas pelo estado. Embora o homossexualismo seja punido com a morte naquele país fundamentalista, a partir de uma fatwa (opinião de um clérigo, que tem valor de lei) dada em 1980 pelo Ayatollah Khomeini (1902/89), líder da Revolução Iraniana (1979), foram reconhecidas pessoas do intersexo (que nascem com genitálias ambíguas). Posteriormente, a partir de 2001, os transgêneros puderam passar abertamente pelo mesmo processo.
Embora islâmico, o Irã foi influenciado pela cultura da Ásia Meridional, onde a figura das hijras, o terceiro gênero, é reconhecida e protegida por lei na Índia, Paquistão, Nepal e Bangladesh. Embora as hijras estejam presentes também no islamismo, suas bases estão no hinduísmo. Deusa desta religião politeísta e antiquíssima, Bahuchara Mata é a padroeira da comunidade hijra. O mito narra que um rei não teve filhos e decidiu orar à deusa para que ela lhe concedesse uma criança. O pedido foi atendido, mas o filho, príncipe Jetho, era impotente. A deusa então apareceu a Jetho em um sonho e ordenou que ele cortasse seus genitais, passasse a usar roupas femininas e se tornasse seu servo. Desde então, Bahuchara identifica homens impotentes e ordena o mesmo. Caso se recusem a obedecer, a deusa os amaldiçoa para que nasçam homens impotentes pelas próximas sete reencarnações.
As hijras são identificadas com os eunucos, homens castrados que serviam às cortes da Antiguidade e Idade Média, geralmente usados na guarda dos haréns dos governantes. Curiosamente, uma das seis peças de Terêncio que sobreviveram até nossos dias é a comédia intitulada “O Eunuco”. Como vaticinou outro poeta, o brasileiro Manoel de Barros (1916/2014): “O mundo é sortido, Senhor”. E não é de hoje.
Sugestão para escutar enquanto lê: Silêncio – Ludwig Van Beethoven
https://www.youtube.com/watch?v=39DNaNAMKAU
Ontem, ao caminhar pelo Centro, senti algo novo em frente ao Teatro de Bolso e o brilho dos meus olhos fizeram o corpo parar, lembrei quando o conheci, ministrando uma palestra e bate-papo com grandes nomes na ocupação. Lembrei-me da primeira peça que ali assisti, Pontal, estava tudo muito quente pela falta do ar condicionado, mas ninguém se importava com tal fato ínfimo perante a grandeza do momento. Àquele tempo, mesmo diante de tanta luta dos que se revezavam na ocupação e da sociedade, o futuro era incerto diante das politicagens que assolavam seu destino.
Como alguém que se renova, que se levanta da queda e sacode a poeira de cara limpa, eu o senti diferente e me alegrei, coisa que já predestinava quando soube, o grande nome do teatro campista o daria a mão e zelaria para que se reerguesse: Fernando Rossi, personagem que figura nesse texto escrito logo após a mágica do encontro entre Pontal e o público no Teatro de Bolso.
Bata forte, artista, como os anos pela vida!
21/05/2016
Estalava o ventilador numa noite tão quente do ar machucar o pulmão. Com um violão, a esperança na mão, no palco do Teatro de Bolso um artista dormiu, e ao dormir sonhou que era um pássaro. Bateu as asas forte, tão forte, muito forte! E subiu, subiu, subiu. Achou uma fresta num cano escuro, entrou e voou além do teto, subiu, subiu, subiu, viu, toda a cidade iluminada, a ponte verde ao lado do abandono rosa. Enquanto o vento frio soprava no seu bico, sentia o pequeno coração bater acelerado com as asas abrindo altas e donas do céu estrelado atrás de si, sentia o ar entre as penas, a vida longe de ser pequena. Do alto viu sua morada, no telhado do teatrinho, um velho ninho amassado e usurpado por predadores ao longo do tempo. Ali estavam seus filhos gritando, aproximava-se uma trupe de aves de rapina para roubar-lhes a casa. Desceu com toda a força, bateu forte as asas como batem os segundos no tempo, desceu, desceu, desceu enquanto o vento passava como passam os anos pela vida o levando a 48 anos atrás…
…Ainda era sua primeira muda de pena quando levava alguns pedaços de palha no bico para construir um aconchegante e pequeno ninho no telhado do teatrinho, escutava as vozes de Gilda Duncan, Rubens Fernandes, Nely Fernandes, Paulo Roberto, Romilda Nunes e Odilon Martins ecoarem e chegarem aos seus ouvidos através da pequena fresta do cano no teto enquanto a cidade iluminada observava a primeira peça no Teatro de Bolso, onde construiu sua casa às vozes de A Moratória, em 15 de abril de 1968. Sentia nas patinhas os tremores dos aplausos, olhava as ondinhas que o vento fazia no rio Paraíba, arrumava palha por palha alinhavando seu ninho e depois empoleirava-se no muro para ver todo o mundo ir embora, quando o último ia, voltava para sua casa, ficava a observar as estrelas até seus olhos fecharem…
De manhã bateu as asas como batem os segundos no tempo, o vento passava como passam os anos pela vida e após 7 rajadas quebrou a asa num tronco soltando 26 penas no Boulevard Francisco de Paula Carneiro. Banhou seu canto com silêncio, não haveria mais dança nesse terreno, corpos ao relento, sua árvore fora cortada. De peito estufado, que pássaro da arte não se dobra com a dor, viu seu coração ser demolido, pétala por pétala, pena por pena. Ali ficou, demorou, caminhou, voltou para a sua casa, no telhado do Teatro de Bolso, chorou. O tempo derramou três lágrimas de silêncio enquanto a pele do pássaro enrugava, em agosto de 1978, na solidão de seu ninho, pôde voltar a admirar o canto dos atores ecoando pela fresta do cano no telhado, anunciando O Pagador de Promessas de Dias Gomes, numa montagem com Orávio de Campos enquanto o mar de luzes da cidade era o holofote do seu palco. Nesse mesmo dia, um passarinho com cores tão vivas que mesmo no escuro pareciam brilhar pousou no muro do telhado e ficou a olhar, imaginar, enquanto ouvia Marisa Almeida e Roberta Nogueira cantar, dançar nas ondas sonoras do ar. O passarinho se aproximou e o pássaro da arte curvou sua cabeça na alegria de ser, um dia, a saudade de alguém. O passarinho colorido subiu ao ninho, se aconchegou, asa com asa, pena com pena, protegeram-se do frio dobrando as patinhas dentro do ninho, e de que importava o mundo se estavam juntos?
Bateram as asas como batem os segundos no tempo, o vento passava como passam os anos pela vida e no silêncio costumeiro do frio alienador o pássaro voltou para a casa e viu três ovos, que foram se romper com a trilha sonora de poesias nas vozes de Osório Peixoto, Fernando Rossi, Adriano Moura e Kapi em 27 de março de 1991. Nasceram, filhos da poesia e das cores, filhos das vozes eternas que ecoam no vazio das reles rouquidões. Com a alma dos artistas moldaram seus cantos, cresceram, pássaros da planície imensa, da angústia imensa, da luta imensa, densa, seus cantares pediram bença à arte.
A vida era boa naquele teatrinho, brincavam de descer na fresta do cano no telhado e se empoleiravam ao lado dos refletores que iluminavam o palco. Olhavam os artistas ensaiarem com o coração a vapor, voavam entre eles como um balé encenado, sapecavam de poltrona em poltrona até saírem pela janela para continuarem as brincadeiras nas árvores da Avenida 15 de Novembro. À noite iam se aconchegar, os três filhotes e os pais dentro do ninho, e ver toda a cidade aplaudir os atores que antes encenavam para as cadeiras vazias. No eco de suas almas bateram as asas como batem os segundos no tempo, o vento passava como passam os anos pela vida levando a 2014…
…Desceu, desceu, desceu! Enquanto batia forte as asas para proteger sua família, lembrava de ter visto os pássaros dissimulados nos entornos, aves de rapina em pele de cordeiro, chegaram até a sua casa pelo inverno, comendo as últimas folhas das árvores que morreram sufocadas. Ouvindo seus filhos gritando enquanto tentavam se defender, batia as asas até quebrá-las de tanta força, desceu, desceu, desceu! Com o bico afiado enfiou no olho da primeira ave que viu, mas eram muitas, e viu, seus filhotes mortos no bico da ave maior, carregados e dissolvidos na noite. Enquanto lutava, suas penas foram arrancadas uma por uma, olhou seu companheiro se debater sem vida no cimento frio do telhado enquanto as cores se tornavam apenas vermelho. Machucado, o pássaro da arte apoiou seu bico no cimento áspero ao lado do pescoço aberto de quem agora é sua saudade, e dormiu. Ao dormir sonhou que era um artista, no centro do Teatro de Bolso, em meio ao silêncio campista, segurava um poema de Eduardo Alves da Costa, com os braços abertos e o pulso sangrando recitava fragmentos da alma para a plateia de cadeiras vazias:
“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
— Bata forte, artista, como os anos pela vida! – Gritou uma voz sem corpo no meio da escuridão. O artista não teve medo, ocupava sua casa com o coração e a alma abraçada às de outros artistas – cujo tempo já havia levado o corpo – sonhando com o dia em que ali ganhará seu pão.
— Meu bem, não se culpe tanto com o tanto de alma que és feito. Tire do seu rosto essa gordura dos três anos de solidão, tudo na vida deixa de ser, mesmo você. – Disse a atriz ao caos dentro do ator.
Ele correu para a coxia, arrumou-se rápido, era dia de peça na ocupação e sua voz não mais silenciada será escutada. De peito nu, no dia 15 de maio de 2016 o ator abriu os braços ao lado de Yve Carvalho e José Carlos Rosa enquanto encenava a peça Pontal, montada por Kapi. Com o corpo em cruz bateu forte no peito, como batem os segundos no tempo, o vento passava como passam os anos pela vida e quando o grito dos três anos perdidos bateu à porta, acordou!
Escrevo este texto enquanto preparamos os equipamentos para mais uma ação de nosso projeto de extensão. Amanhã estaremos no Colégio Estadual Dr. Thiers Cardoso para a oficina Arte e Memória na escola: O Brasil através de sua música. Durante duas horas apresentamos um século de música, saindo de Adoniran e chegando a Emicida.
Bem, como alguns de vocês já sabem, minha tese expressa meu interesse sobre música e sociedade, sobre periferia e produção cultural. Meu texto anterior sobre insurgência e greve recuperava memórias sobre atuação dos estudantes na década de 90. Na contribuição de hoje olho para o futuro que encontramos nas escolas de Campos. E neste texto quero nomear alguns dos amigos que até aqui já responderam a minha pergunta: Marcos, Márcio, Gizele, Valéria, Fernanda, Jorge, Paulo, Rodrigo, Ana, Ausberto, Daniel, Michely, Marcely, James, Ivilla, Elaine e Marcelo.
Sabe o que temos em comum? Durante toda a nossa formação ou em parte dela, passamos pela escola pública e seguimos neste processo. Temos aqui professores da UFF, da Uenf, do IFF, amigos de Porto Alegre, de São João da Barra, de São Paulo, da Maré, de Cabo Frio… ou seja, com toda as suas limitações, com todas as deficiências que por ventura muitos trazem da escola pública, ela permanece como uma referência.
Como uma experiência de vida. Quando apresentamos a bossa nova para alunos expostos às rádios, não queremos levar o bom gosto cultural. Não queremos educá-los a gostarem destas produções com um discurso de autoridade. Nada disso.
Nossa aventura tem início nas marchas de carnaval com refrões como “bota o retrato do velho outra vez, bota no mesmo lugar, o sorriso do velhinho faz a gente trabalhar” para apresentar aos alunos a Era Vargas. Apresentamos Zé Carioca ao som de “Aquarela do Brasil” e seguimos com o barquinho de Nara Leão e Menescal até desembarcar no baião de Gonzagão. Essa oficina já passou pelo IFF na Semana de Geogradia, por Itaperuna, sendo apresentada também na Feira de Ciências da Uenf, no início deste ano.
Ao mesmo tempo em que tenho o prazer em reviver para alguns os festivais com Chico e Milton apresentando “Cálice”, percebo a demora com que os alunos engajam-se em nossa proposta. Mas não seria simples desinteresse. Talvez o desafio em repensar a escola resida nas formas de produção de engajamento. E no momento em que as primeiras batidas pesadas de Fim de Semana no Parque ganham o espaço, uma mudança qualitativa ocorre. Finalmente eles demonstram adesão ao discurso. Este é nosso ponto de reflexão e por isto os projetos de extensão são essenciais para pesquisa.
No dia 26 de agosto, no Jockey, mais de 30 alunos ecoaram “Rap da Felicidade”, ao som de Cidinho e Doca. Não faço distinção entre “Faroeste Caboclo”, “Construção” e “Rap da Felicidade”. São letras longas, contundentes, bem construídas internamente. O que mudou no cenário musical e na escola? As rádios e seu monopólio vendem sons e as imagens são parte fundamental da socialização juvenil. Não seria mais exatamente música para ouvir, mas para ver. Pode parecer estranha a idéia, mas reféns de uma sociedade do espetáculo, termo cunhado por Guy Debord, estes alunos de escola pública nem sempre realizam as conexões entre raça, classe e produção musical.
Certamente a forma como o corpo feminino é apresentado, não possibilita que essas meninas se libertem. No início da oficina, em uma linguagem bem direta, apresentei a seguinte letra “eu te amava nos tempos da escola, mas você não de deu atenção, pedi uma chance, pedi duas, mas você me disse não, vou marcar de te ver e não ir, vou te comer e abandonar, esta é a lei do retorno e não adianta chorar”.
Visivelmente com risos nervosos, confessaram conhecer a música. Então brinquei com os garotos “muito fora de moda esse comportamento, tratem as meninas com respeito, as mulheres hoje são espertas e inteligentes, não estão mais nessa onda”. Claro que as meninas aderiram. Mas é preciso enfrentá-los, em sua agressividade natural, em seu pedido truncado por afeto e orientação. Sim, a escola pública, assim como nossas universidades, são essas usinas de criatividade, desejos e incertezas. Não devemos moer seus espíritos para jogá-los em seus bairros. Sim, eles têm interação com o tráfico. Vamos colocar isto em debate. Sim, eles já têm uma vida sexual. E a religião não colaborou para mudar os quadros de aumento das doenças sexualmente transmissíveis.
Acabo por acaso de assistir a “Capitão Fantástico”. E o ponto interessante deste filme foi a capacidade de explicar os fenômenos do mundo tal como se apresentam. Vejam que Mc Don Juan, o cantor da letra citada acima, deve ter 16 anos. Em que momento de sua trajetória artística chegou a conceber que uma menina deve ser “comida e abandonada”?
Pois bem, vou contar a vocês que gravadoras como a Furacão 2000 testam nos bailes certas tendências que agora chegam à São Paulo. Ou seja, mesmo que Deise Tigrona quisesse cantar o amor, sua família era sustentada com o Rap da Injeção, “tá ardendo doutor”. Meus interlocutores na favela não queriam aquelas letras, apresentavam outras, até mesmo o chefe do tráfico em determinada favela proibia certas letras. Mas, vidrados na imagem, mantidos sobre excitação constante dos sentidos, nossos alunos de escola pública perdem a possibilidade de criar.
Somos tão jovens, éramos logo ali, nos anos 80, apaixonados e perplexos. Mas fosse o punk dos Titãs, ou o ska dos Paralamas, estávamos interessados em um país que não conhecíamos. Da mesma forma como ainda eram as letras de Renato Russo que embalavam nosso platonismo. Me parece que nossas experiências geracionais nos anos 80 ainda eram românticas. Pois bem, se a televisão nos deixou burros demais, a web explodiu as possibilidades, ampliou uma certa indiferença.
Simmel, um judeu alemão adorável nos fala dessa vida na cidade. De um espírito indiferente, estimulado pelo neon, acossado pelo excesso de luz, de som, de movimentos. Essa é a disputa vivida na escola pública. Sem violões e num tempo de alta velocidade, disputamos corações e mentes destroçados pelos conflitos urbanos, pela precariedade estrutural do bairro, pelo estigma policial, por uma subindústria cultural para a qual quanto mais exposição dos quadris, dos seios e dos dorsos masculinos, mais vendas.
E não se enganem, transexuais fazendo sucesso só serão permitidas por algum tempo. Pois a base que comanda o monopólio das rádios, televisões e jornais não foi alterada. Pablos ou Fernandas duram o tempo dos “likes” de estação. A luta real é contra este projeto de desmonte da escola pública e das universidades, ocupando, produzindo outros sentidos. Fazendo vídeos e músicas ao invés de consumir os hits de São Paulo com Mcs que sequer escolhem o que cantam.
Ah, e no meio disto tudo, estamos tentando fazer uma Mostra de Música em Campos, em novembro. Com total liberdade de criação.
A civilidade imperou no desfile cívico, ontem, no Dia da Independência em Campos. Nas arquibancadas do Cepop, símbolo maior da gastança nos oito anos da gestão Rosinha Garotinho (PR), houve manifestações contrárias e favoráveis ao atual governo municipal. Mas todas dentro dos limites do estado democrático de direito. Comandante do 8º BPM, o tenente-coronel Fabiano Santos confirmou que seu setor de inteligência sabia do movimento urdido nas redes sociais para tentar ameaçar fisicamente o prefeito Rafael Diniz (PPS) durante o evento, na prática de terrorismo político que chegou a parar Campos na última segunda (04).
Terrorismo medrou (II)
Nas duas últimas edições desta coluna, a tentativa de impor o terrorismo ao município foi denunciada (aqui e aqui). Num movimento que usou a greve dos servidores na segunda, com insatisfação dos rodoviários, garis e motoristas de ambulância das empresas prestadoras de serviço, Campos ficou parte daquele dia sem ônibus e coleta de lixo. Esses movimentos reivindicatórios foram utilizados pelo grupo apeado do poder, após quase 30 anos, para tentar instalar o caos na cidade. Coagir publicamente o prefeito no 7 de Setembro seria a cereja desse bolo, cuja assadura foi interrompida quando a tampa do forno foi aberta e a receita revelada.
Terrorismo medrou (III)
Quem acompanha a política goitacá mais de perto, sabe que a acachapante vitória eleitoral de Rafael, ainda no 1º turno, em todas as sete Zonas Eleitorais, se deu também porque, após as primeiras prisões da operação Chequinho, o esquema de compra de votos do garotismo teve medo de sair às ruas. Guardadas as distinções devidas, não foi diferente ontem no Cepop. Também ontem, esta coluna advertiu que quem embarcasse na promoção de terrorismo pela cidade teria que medir as consequências dos seus atos. Para isso, só há uma solução: a imposição do limite da lei. Os próximos dias dirão se governo e oposição aprenderam a lição.
Sentença à vista
A semana chega ao fim, em meio a um feriado prolongado, com grande expectativa, já que não deve demorar muito para que seja divulgada a sentença daquele que é apontado pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal como o “líder” do “escandaloso esquema” da Chequinho. Após a apresentação das alegações finais, feitas pelo advogado de Anthony Garotinho, o próximo passo do juízo da 100ª Zona Eleitoral é a sentença.
Bola de cristal
Não é de hoje que Garotinho brada por onde passa, ou nos espaços de comunicação que lhe restam, que será condenado. Mais uma vez parece ter colocado sua bola de cristal para funcionar, dando como certa uma sentença desfavorável, fruto, segundo ele, de “perseguição”. O que o marido da ex-prefeita Rosinha insiste em negar estão comprovados em várias provas e depoimentos, que puderam ser avaliados por, pelo menos, cinco advogados, que o representaram ao longo desta ação penal.
Pressão de Rosinha?
Nos bastidores dizem que mais do que sua condenação Garotinho tem temido as consequências à sua esposa, também alvo de ação judicial na Chequinho. Rosinha estaria receosa com o que está por vir e vê mais do que os planos eleitorais, sempre traçados pelo marido, serem comprometidos. A rotina de dona de casa, artesã e vendedora de cosméticos também estaria ameaçada. Dizem os mais próximos ao casal que uma suposta pressão de Rosinha sobre o “presente” de Garotinho tem sido mais perturbador do que qualquer sentença.
Restituição
Em tempo de crise, qualquer dinheiro é muito bem vindo. E para quem tem direito a restituição do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) de 2017, a consulta ao quarto lote estará disponível a partir das 9h de hoje. O lote contempla 2,257 milhões de contribuintes, totalizando a liberação de mais de R$ 2,7 bilhões. Também serão liberadas para consulta restituições residuais dos exercícios de 2008 a 2016. A consulta é feita no site oficial da Receita Federal.