Guilerme Carvalhal — A instalação

 

 

 

Após o anúncio da instalação artística “O estupro coletivo”, uma multidão cercou a praça empunhando cartazes de protesto contra a baixaria em local público. A polícia militar formou um cordão de isolamento e apenas assim a artista Liza Mainhoff conseguiu dar continuidade à sua obra, recebendo hostilizações verbais da turba em fúria que acampou nos arredores.

O curador tentou explicar a intenção da obra, alegando que buscava retratar em tons bem vivos o caos formado pela violência urbana, em uma proposta de conduzir os visitantes à reflexão sobre o mundo contemporâneo. Ele deu uma entrevista na TV falando sobre isso e foi xingado virtualmente e posto como o mais novo defensor da degeneração dos valores morais da sociedade.

Os repórteres de TV perguntaram o que na exposição os incomodava. Muitos destilaram ódio, mas ninguém sabia dizer nada sobre o que seria apresentado tamanho o sigilo imposto. O próprio transitar de Liza ocorria sob forte segredo e um dia, ao perceberem sua saída disfarçada, acertaram um ovo em seu peito e ela se limitou a rir, sem sequer limpar a sujeira do casaco.

No dia da inauguração, o grosso do público era composto pelas figuras contrárias. O medo da violência afastou a maioria dos interessados, restando uma restrita aglomeração de fãs da artista dispostos a até mesmo apanhar, contanto que comparecessem e endossassem a obra.

Quando abriram os portões, o grupo invadiu levantando seus gritos de guerra, mais assemelhado a uma horda rumo à batalha. Devido à extensão do parque, espalharam as obras por várias partes, todas cobertas em lençóis laranjas. À medida em que a multidão entrava, os auxiliares descobriam e revelavam o conteúdo tão aguardado.

Sobre os cavaletes, destacavam-se impressas em grandes lonas as frases de ira proferidas pela turba ao longo dos dias. Telões exibiam gravações da fala dos integrantes da multidão expressando seu desejo de que Liza fosse presa, banida do país , preferencialmente morta. E no ponto central, à vista de todos, uma imensa foto dela logo em seguida ao momento em que recebeu a ovada e sua expressão de quem não importava soou à maneira de um imenso deboche para cada um dos presentes.

Todos atingirem o ápice de seu frontispício iracundo e essa explosão atingiu as obras em si. Começaram a arrastá-las e a empilharem sem nenhum tipo de reação dos seguranças, como se esse fosse um gesto esperada e calculado depois de muitas provocações. Incendiaram-nas em uma grande pira, que teve como principal combustível o retrato de Liza suja.

A turba observava o arder das chamas com uma certa mudança ocorrendo por dentro. Enquanto suas próprias palavras definhavam em cinzas, internamente algo se consumia junto, esvaziada toda a fúria nutrida nesse ínterim.

Foi quando, em um onisciente coletivo, todos se deram conta de seu papel dentro do espetáculo e, envergonhados, redirecionaram contra si mesmos a ira propalada, feito palhaços incapazes de levar o público ao riso. Aos poucos foram formando filas e se lançaram nas chamas, dessa vez chamando a atenção dos policiais que tentavam salvá-los.

Nas proximidades, Liza gargalhava ao comemorar os efeitos de seu plano. Feito a bruxa que lançava os fiéis à punição da inquisição, ela ria com a soberba de quem enxergava um plano se concretizar, sem nem imaginar que, nas ranhuras distantes das vielas da cidade, sempre renascia o germe de uma mão disposta a assassiná-la.

 

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