Pá de areia de Atafona com a lama do Paraíba entre os grãos

 

 

Nós sabíamos

Por Aluysio Abreu Barbosa

 

“Caro Aluysinho, nós éramos felizes e não sabíamos. Abraços. Oswaldo Ferraz Filho. 15/01/13”. Foi esta a dedicatória escrita de próprio punho atrás da fotografia que Oswaldinho me mandou naquele início de ano, poucos meses após a morte do meu pai.

Se não me engano, a foto fora feita em 1987, 26 anos antes de eu a receber sem esperar. Na imagem congelada do tempo, Oswaldinho e eu, ainda adolescente, gargalhávamos, sentados na mesa e ladeados por Aluysio Cardoso Barbosa (1936/2012), sempre mais sério, com seu inseparável cigarro entre os dedos.

Oswaldinho era amigo de Aluysio. E era pai de dois meus amigos de infância, Fabiano e Evandro Ferraz. Estudei com o primeiro no curso primário da saudosa Escola Santo Antônio da Formosa, que hoje abriga o Hortifruti. Depois, voltamos a nos cruzar no segundo grau, atual ensino médio, do Auxiliadora, onde só estudei justamente naquele ano de 1987.

Mesmo ruim na linha, embora esforçado no gol, como qualquer bom “perna de pau”, frequentei também o campo gramado de futebol, conjugado à casa de Oswaldinho, na rua Edmundo Chagas. Aquele foi meio que ponto de referência de uma galera de classe média de Campos que cresceu junta nos anos 1980.

No final daquela década de ebulição, em 1989 se daria a primeira eleição a presidente no Brasil desde o golpe civil-militar de 1964. Foi quando passei a escrever em jornal, movido pelo sentimento de esperança democrática que tomava conta do país. Talvez tenham sido os primeiros goles do chope de cuja brutal ressaca padece hoje o país.

Como tinha 17 anos e a enorme pretensão de escrever sobre política nacional ao leitor adulto, passei a dolosamente acompanhar meu pai em suas costumeiras idas vespertinas da redação da Folha ao Boulevard Francisco de Paula Carneiro, também conhecida como “Rua dos Homens em Pé”. Num tempo pré-redes sociais, o experiente jornalista me ensinou uma maneira empírica de saber como repercutiam em nossa aldeia os assuntos do dia.

Oswaldinho era um dos companheiros mais constantes de Aluysio nessas conversas regadas a cafezinho durante as tardes. Se nossa relação antes se restringia ao contato entre um pai e o amigo adolescente dos seus filhos, a amizade pôde, a partir dali, transpor precocemente a barreira natural entre as gerações.

Além do bom marido, pai zeloso e médico endocrinologista conceituado na comunidade, pude conhecer melhor um sujeito simpático e bom de papo, vascaíno chato e às vezes esquentado, amigo dos amigos e dono de sólidos valores morais. O tempo passou e nessas coisas da vida, que depois não sabemos dizer como ou porquê, acabamos nos distanciando, como também ocorreu entre mim e seus filhos.

Nos últimos anos, sabia mais da família por Laura Ferraz, prima de Oswaldinho e braço direito de Diva Abreu Barbosa na Folha. Foi por Laura que, naquele início de 2013, o velho amigo me enviou a foto, nossa e de meu pai, com a dedicatória.

Recebendo-as sem esperar, bateu súbita e contundente a saudade do tempo em que um garoto brincava de ser homem sentado na mesma mesa com o pai, morto poucos meses antes, e seu amigo. Confesso, chorei pela sensibilidade daquele gesto tão carinhoso e paternal.

Liguei para agradecê-lo no mesmo dia e combinamos de nos encontrar, o que acabou não acontecendo. Pouco tempo depois, sabendo também por Laura do câncer contra o qual Oswaldinho lutou bravamente por quatro anos, tentei diversas vezes visitá-lo. Nesta intenção, busquei a intermediação de Fabiano e Evandro. Mas eles me confidenciaram que o pai evitava receber visitas.

Conhecendo o orgulho de Oswaldinho, traço da sua personalidade firme, respeitei. Mas na manhã de ontem, quando soube da sua morte poucas horas antes, novamente por Laura, me arrependi por tê-lo feito.

Ao final da tarde, no velório do amigo morto, ao falar com seus filhos vi estampado em cada face a mesma orfandade que senti quando perdi meu próprio pai, cinco anos atrás. E sei que não há nada que se possa dizer capaz de preencher o buraco deixado.

Assumido esse vazio, aquela foto e a dedicatória foram uma pequena, mas generosa pá de areia de Atafona — aquela que guarda a lama fértil do Paraíba entre seus grãos.

Sim, nós éramos felizes. Só discordo em uma coisa de Oswaldinho: Nós sabíamos!

 

Publicado hoje (05) na Folha da Manhã

 

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