No seu ateliê, aqueles quadros sem nenhuma expressão. Paisagens urbanas em tons de cinza, naturezas mortas. Clara se frustrava com sua própria inexpressividade. Pensava em construir um estilo próprio, em encontrar a singularidade dos próprios traços, de criar sua identidade. Isso tudo em vão. Desdobrava diante de si uma carreira medíocre, de poucos quadros vendidos, todos a baixo preço. Procurar o concurso público como os pais exigiam se tornaria a solução.
Descendo de lá, o caminho até o ponto de ônibus passava por um beco escuro. Diariamente cruzava por essa área, sempre reticente quanto aos ratos pulando de dentro dos bueiros. E nesse beco que um homem a agarrou e a estuprou.
Os socorristas a atenderam. No hospital, realizaram toda profilaxia necessária e cuidaram de seus ferimentos. Também foi atendida por uma psicóloga. O bandido foi preso e condenado a doze anos de cadeia.
Após algumas semanas de reabilitação, retornou ao seu estúdio. Parou perante a uma tela branca e lascou uma furiosa pincelada com a tinta vermelha. Deixou fluir a incomensurável raiva e ao final considerou bom o resultado. Assim então se dedicou em ritmo frenético, produzindo dez quadros nos quais ela finalmente demonstrou a qualidade desejada desde quando aprendeu e desenhar.
Convidou um conhecido ligado a uma galeria de artes e esse se impressionou com o resultado. Ele organizou uma exposição de Clara e a mesma foi um sucesso, vendendo todos os quadros e recebendo críticas positivas da imprensa especializada. Um renomado colecionador comentou que sua obra retratava os sentimentos da mulher do século XXI e todo seu conflito social, confrontando a opressão do mundo e toda sua violência.
Esse foi o primeiro degrau de sua prestigiosa carreira. Sua produção de quadros se aprimorou, refletindo uma ferida interna que se recusava a estancar. Ela simbolizava a dor que lhe consumia sem nunca conseguir superá-la e com isso alimentava um renome que se convertia em dinheiro. Ao longos dos anos suas obras conquistaram o mercado internacional e ela realizou exposições pelos Estados Unidos e pela Europa. Ela estava entre um dos maiores nomes das artes plásticas brasileiras e conseguia em um único exemplar atingir valores que chegavam a mais de cem mil dólares.
Por todo esse tempo, acompanhou o processo em torno de seu violador. Marcou o tempo que faltava para esse sair da cadeia com um pensamento constante, o do quanto sua passagem breve e doloroso por sua vida lhe causou uma enorme mudança. Avaliava seus prêmios, sua fortuna, seu sucesso e sabia que por trás disso tudo reinava aquele dia fatídico. Caso houvesse uma linha do tempo alternativa onde aquele homem não existisse, estaria condenada à mediocridade de uma vida carimbando papéis em uma repartição.
Justamente por isso, no dia da saída dele na cadeia, ela o aguardou em frente ao presídio. Em suas mãos, um embrulho de presente, singela mostra de retribuição pelo diferencial que proporcionou para ela. Amarrou a fita lilás com esmero, querendo demonstrar toda a importância dele.
Logo ao vê-lo atravessar o enorme portão do presídio, ela acenou sorridente. Frente a frente, ele logo se lembrou da sua efígie com surpresa. Aquela noite mudou os cursos do futuro de ambos e agora, após tanto tempo preso, revê-la consistiu em inesperada situação: jamais diria que seria a primeira pessoa com quem encontraria fora das grades, ainda mais com esse pacote de presente na mão, que lhe oferecia.
Antes que ele pegasse o pacote, ela pediu que esperasse. Clara mesma se encarregou de desembrulhar e de dentro sacou um revólver. O ex-prisioneiro deu um passo atrás, assustado, implorando perdão diante da arma apontada.
Pela cabeça dela percorreram muitas dúvidas, se valeria a pena abdicar de tudo que construiu em prol de uma estranha lei do retorno. Havia um dilema reinante nela, do quanto devia sua carreira ao crime que sofreu, e precisava de alguma forma resolvê-lo. Então apertou o gatilho e descarregou o tambor naquele homem que agonizou e faleceu nas portas da penitenciária sob os olhares silenciosos dos vigilantes.