Guilherme Carvalhal — O sino

O bater do sino sempre significou para Amélia uma espécie de bússola que demarcava o tempo. A primeira badalada ordenava que se levantasse e a do meio-dia orientava a hora de almoçar. Ao fim da tarde, seu ressoar anunciava o encerramento de suas costuras e à noite a hora de dormir.

Seu avô contava dos tempos em que o cantar do galo anunciava a alvorada e tirava todos da cama. Ainda cedinho se erguiam para iniciar os afazeres e dependiam do pôr do sol para encerrarem a luta diária. Ela ria desse comentário, sem conseguir conceber um cotidiano guiado por tais instintos.

Após uma densa tempestade, o sino da igreja desabou e ela se viu completamente perdida. Acordava a esmo, muitas vezes antes do dia clarear, em outras depois do horário usual para começar a trabalhar. O almoço entrava quando seu estômago roía de fome e, como seu avô, encerrava a labuta nos sinais do crepúsculo.

Ela rodeava a igreja e perguntava quando reconstruiriam o sino. O padre recolhia doações, essas ainda bem longe para custear a obra. Além disso, o sino vinha da Europa e chegar de navio levaria meses. Isso tudo a levou ao desespero.

Cada vez mais Amélia se sentia atrapalhada. Seu sono desregulou junto à sua alimentação. Despertava tarde e precisava atravessar a noite costurando com a lamparina acesa para finalizar seus pedidos. Sentia-se cansada e caía sobre agulha, linha e pedaços de chita.

Aos poucos sua presença desapareceu do convívio da comunidade. Quase ninguém a via, e quem a via comentava que andava amalucada, cheia de manias estranhas. Alguns criam que havia morrido ou ido embora.

Apenas depois de dois anos a restauração da torre do sino foi concluída. Para a inauguração e seu primeiro badalar, foi promovida uma cerimônia de descerramento com as autoridades locais. O povo em peso compareceu.

Enquanto o prefeito discursava, chegou uma senhora encanecida apoiada em um bastão. Desconhecida por todos, entrou no meio da multidão sem chamar a atenção, entendida como uma mendiga de fora atrás de alguma benção na igreja.

Seu passo pouco ameaçador permitiu que chegasse à frente de toda a turba. Assim quando parou próxima ao palco, as autoridades puxaram as cordas que removeram os panos que cobriam o sino. Todos bateram palma diante do reflexo do sol na estrutura de bronze.

Exposto o sino, o sacristão puxou as cordas para que todos ouvissem seu badalar. Logo ao soar, o foco se voltou para aquela senhora idosa. Um efeito místico ocorreu sobre ela, repentinamente rejuvenescendo conforme as batidas ressoavam. Foi se erguendo, deixando a bengala de lado. A pele reduziu e as rugas desapareceram, além de ganhar sua textura forte de mulata. Os cabelos escureceram e avolumaram e os dentes se reconstruíram.

Após a metamorfose, todos reconheceram Amélia e ninguém entendeu de fato essa bruxaria. Ele sorria, encantada com o novo sino, concedendo a ela uma nova chance sobre a terra. Todos saíram correndo abandonando a festa pública. Apenas ela poderia compreender que aquele badalar representava a recuperação do tempo perdido.

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